Há dias que se transformam em tardes prodigiosas e é um privilégio estar neles e poder vivê-las. Comecemos pelo princípio: junto à estação de Sintra apanhámos um autocarro gentilmente disponibilizado pela organização do
Festival que nos levou pela Estrada de Monserrate até à Quinta da Piedade, ao som de canções de Quim Barreiros e Marco Paulo.
A história da
Quinta da Piedade ficará para sempre ligada a Olga Nicolis di Robilant Álvares Pereira de Melo, Marquesa de Cadaval, que nela viveu e nela recebeu muitos dos seus amigos artistas, principalmente músicos. Se Sintra tem um festival de música de prestígio internacional, deve-o essencialmente a Olga Cadaval. Foi ela quem o impulsionou.
É notável a lista de artistas que de algum modo estão relacionados com a Marquesa de Cadaval, quer porque ela os protegeu com o seu mecenato, quer porque eram seus amigos: Nelson Freire, Martha Argerich, Jacqueline Dupré, Daniel Barenboim, Benjamin Britten (compôs em sua honra a parábola religiosa "Curlew River"), Gabriele D’Annunzio, Marinetti, Giacomo Puccini, Cole Porter, Maurice Ravel, André Malraux, Coco Chanel, Arthur Rubinstein, Ygor Stravinski, Mstislav Rostropovitch, Ortega Y Gasset, Graham Green, Saul Bellow, Maurice Maeterlinck, Cosima Wagner, Olga Pratts, José Vianna da Motta, Vitorino Nemésio, Fernando Lopes Graça, Maria Germana Tânger... (leia-se o
Historial da Marquesa de Cadaval)
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Detalhe da casa de fresco |
A quinta parece ter sido criada a pensar no prazer da música, nos divertimentos para as tardes de Verão.
Quando passamos o portão, a casa do século XVIII fica à esquerda e à nossa frente, em baixo, avistamos o pequeno jardim de buxo e a casa de fresco ao fundo, com a fachada de azulejos barrocos.
À esquerda do jardim de buxo está o palco, ao qual os músicos acedem subindo alguns degraus e onde vemos mais azulejos do século XVIII e esculturas representando
putti e outras figuras com instrumentos musicais. E foi o que ia passar-se aí que nos levou para os lados de Colares.
Antes do início, uma senhora da organização anunciou que os músicos pediam desculpa pelo facto de a bagagem de um dos colegas (o trompista Martin Owen) estar perdida e ele ter de se apresentar sem trajo de concerto, uma vez que tinha chegado a Portugal havia poucas horas. Posto isto, passou-se a
o que verdadeiramente interessava: o Divertimento. Um belíssimo Divertimento para oboé, clarinete e fagote de Mozart, seguido de dois quintetos para piano e sopros, um de Beethoven e o outro de Mozart. Aos músicos do Ensemble de Berlim juntou-se o pianista Shai Wosner.
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Ensemble Berlin (fotos da quinta © telemóvel do Miguel Jorge) |
Uma formação de sopros não é à partida o que me atrai a um concerto, eu que sou mais de piano e cordas. Contudo, algo me dizia que este concerto havia de ser muito bom. Pois não foi. Foi apenas excepcional. Foi um grupo de amigos que resolveram vir de Berlim para tocar na Serra de Sintra e deixar-nos com pele de galinha e com os olhos húmidos. Foram muitos os momentos sublimes. Um deles, um dos mais sublimes de todos, foi o segundo andamento do quinteto de Beethoven, quando os instrumentos começam a conversar uns com os outros: o oboé pergunta, o fagote responde que sim, a trompa retorque, o clarinete conclui e o piano sublinha. O que fascina nestes músicos é a cumplicidade que os une, a interpretação perfeita - Beethoven é Beethoven e Mozart é Mozart -, a técnica irrepreensível. Com instrumentistas deste calibre, como não há-de a Orquestra Filarmónica de Berlim ser a melhor do Mundo, dei eu comigo a pensar.
Os passarinhos gostaram tanto que começaram a acompanhar a música com os seus sopros naturais do alto dos ciprestes.
No regresso a Sintra, uma agradável surpresa: não havia música no autocarro!
Agora vou escrever aqui os nomes dos músicos para não me esquecer:
Christoph Hartmann, oboé
Andreas Ottensamer, clarinete
Mor Biron, fagote
Martin Owen, trompa
Shai Wosner, piano
E
amanhã mais logo há Artur Pizarro em Queluz.