24.11.12

Prodígios

Já me tinha resignado. Os Filarmónicos estavam em Lisboa e eu não ia ouvê-los; os bilhetes estavam esgotados, parecia, desde sempre. Mas eis que o telefone tocou e, qual prodígio como só a Helena sabe produzir, as coisas arranjaram-se de modo a que alguns dos melhores músicos do Mundo quisessem, na véspera do concerto na Gulbenkian, ir ouvir fados à Mesa de Frades e aí se deixassem encantar pelas melodias, pelas vozes fadistas e pela guitarra portuguesa de Ângelo Freire. Foi bonito ver um violinista, um violetista e um trompista discorrendo sobre as sensações que esta música estranha lhes causava e sobre a técnica de dedilhar seis pares de cordas. "Gosto muito de tocar aqui porque posso fazer experiências; no palco não", disse-lhes Ângelo Freire.



Foi mais ou menos assim que começou o concerto da Orquestra Filarmónica de Berlim. A obra chama-se Atmosphères e foi composta por Ligeti em 1961 e utilizada mais tarde por Kubrik em 2001: Odisseia no Espaço. Não será a peça mais expectável num concerto de tournée dos Berliner Philharmoniker, e no entanto faz todo o sentido apresentá-la como eles o fizeram. É uma peça atmosférica, como o nome indica, e a sua composição, conforme se lê no programa de sala, é "um exemplo perfeito da noção de Ligeti de uma música estática e auto-contida, que aliás tinha antecedentes na história da música, nomeadamente no Prelúdio do Lohengrin". Atmosphères termina num silêncio que Sir Simon manteve por alguns segundos, até entrarem os primeiros acordes de Lohengrin. A passagem de Ligeti para Wagner foi perfeita e arrebatadora.

Depois de Wagner ouviu-se Jeux, de Debussy, uma obra que não me fascina mas que foi magistralmente interpretada, e a primeira parte acabou em ambiente eufórico com a Suite nº 2 de Daphnis et Chloé, de Ravel. O bailado, composto para os Ballets Russes, foi estreado em Paris em 1912. A partir dele, Ravel compôs duas suites, a segunda das quais corresponde à cena final, culminando numa "voluptuosa celebração dionisíaca do amor físico". Vendo aqueles músicos a tocar esta peça, fiquei a pensar se Ravel não teria em mente uma coreografia para orquestra, tal é o efeito visual oferecido ao público ora pelos arcos dos naipes de cordas, ora pelos sopros, ora pela percussão, com o esfuziante Wieland Welzel nos tímpanos. Rattle e os Filarmónicos no seu melhor.

Na segunda parte regressou a contenção. A Renana é uma obra com características contemplativas e não será das sinfonias mais arrebatadoras do reportório. Depois do contagiante Ravel apetecia mais um Mahler ou um Bruckner que as delicadezas de Schumann. Talvez para a próxima, se a Fundação Gulbenkian nos fizer o jeito. Se não for ela, dificilmente voltaremos a ouver a melhor orquestra do Mundo em Lisboa.


(Fotografias de Michael Trippel em The Official Tour Weblog. Ide ver.)