Jorge Rodrigues tem a palavra:
O Concerto de Ano Novo que hoje decorreu no Teatro Nacional de São Carlos foi o melhor início de ano que tive de há muito tempo a esta parte. A coisa explica-se facilmente: uma das maiores cantoras do mundo apresentou-se ali com um programa de arromba, daqueles que precisamente só uma das maiores cantoras do mundo poderia defender. Não apenas pela verdadeira proeza que é cantar completamente à vontade, e gloriosamente, algumas das mais difíceis e escolhosas árias de Verdi e de Puccini (a primeira da Lady Macbeth e o “In questa reggia” da Turandot), mas também pelo verdadeiro feito vocal que é afrontar, depois destes trechos, uma série de árias que obrigam a uma ductilidade, um lirismo, uma leveza de emissão e uma graciosidade que são o oposto musical, dramático e técnico das primeiras – ou seja, uma deliciosa série de páginas de opereta vienense e de zarzuela espanhola. Todas elas foram cantadas como poucas vezes ouvi (e já ouvi muitas!). À extraordinária e única realização musical a grande cantora aliou um completo à vontade e uma veracidade no domínio dramático que transformaram todos os momentos em actos únicos de prazer e de empatia.
Convém agora dizer que esta, que é uma das maiores cantoras do mundo, se chama Elisabete Matos, e que é portuguesa, e que tem nos últimos anos realizado uma carreira que a tem levado aos maiores palcos de ópera do planeta - e não vou nomeá-los para que este texto não se transforme num atlas mundial.
Elisabete Matos é portuguesa e sente muito, e adora, o seu país. O que poderia não acontecer, mas acontece. Prova disso é este concerto. Assim que se anunciaram os dramáticos cortes orçamentais que o São Carlos sofreu – como todas as instituições nacionais – logo Elisabete Matos se prontificou para oferecer ao Teatro um Concerto de Ano Novo cuja receita pudesse ajudar na difícil situação económica. Mais, pediu a um amigo seu, o maestro espanhol Miquel Ortega (que, diga-se, dirigiu fantasticamente o evento), que a secundasse neste gesto e viesse – também graciosamente – participar no concerto. Eu, tal como Amália Rodrigues, não gosto daquelas palavras ou frases muito “grandes” que correm o risco de ficar pequenas, mas atrevo-me aqui a dizer que só artistas com muita alma têm gestos destes. Isto não foi anunciado, obviamente, mas tinha de se saber. Eu sou português, caramba, e como elemento do Coro do Teatro não posso deixar de querer exprimir a minha comoção e o meu profundo agradecimento. Está dito.
Pois o concerto foi um sucesso extraordinário, como há muito tempo não se via em São Carlos. Para já, a tarjeta de “Esgotado” posta dias antes nos cartazes. E depois – e é isso que sempre interessa – a recepção do público; um público verdadeiramente emocionado, vibrante, prestando à cantora ovações delirantes. Foi um fim de tarde verdadeiramente histórico, e este é um Primeiro de Janeiro que nunca esquecerei por mais que viva.
Que fazem perante isto a televisão e a rádio estatais do país? Recorde-se que os contribuintes pagam uma estação televisiva de nome RTP2 que, segundo apregoam, é vincadamente dedicada à cultura, e pagam também uma estação de rádio estatal que há uns anos se dedicava à cultura, de nome Antena 2. Mas, mesmo assim, poderiam ter pensado, sei lá, que talvez fosse bom transmitir o concerto de Ano Novo de Lisboa. Pois não pensaram! Em vez de transmitir a verdadeira alegria que foi termos um São Carlos apinhado por causa de uma portuguesa que é uma das maiores cantoras do mundo, optaram pela transmissão do Concerto de Ano Novo de Viena - aquilo que, embora de grande qualidade, se compra empacotado, não dá trabalho, não faz pensar. Para eles o Chiado é menos português que a Annestrasse!
Cada vez me sinto mais ciceroniano: Até quando abusarão da nossa paciência?
Jorge Rodrigues