2.2.11

A Primeira Isolda


Disseram-me que em Lisboa fez sol mas, em Oviedo, o dia 30 de Janeiro trouxe uma chuva fininha à moda da Irlanda, saudando Isolda, como que dizendo-lhe "estás em casa".
Para quem tem acompanhado a carreira de Elisabete Matos não será surpresa que ela vista agora a pele da princesa irlandesa, rainha das personagens femininas wagnerianas. No final do I acto já as lágrimas assomavam aos nossos olhos e, de voz embargada e frases atabalhoadas, tentávamos exprimir sentimentos contraditórios de felicidade e frustração. Felicidade por estarmos a assistir a uma récita memorável, frustração por não haver actualmente um teatro em Portugal que possa montar uma produção daquele nível, com cantores de primeira água. O Campoamor de Oviedo, que não tem os meios do Liceu de Barcelona nem do Real de Madrid, consegue-o. Bravo!
Em tempo de crise, em vez de manter a planeada nova produção de "Lohengrin", o teatro conservou os cantores contratados e repôs a encenação de "Tristan und Isolde" por Alfred Kirchner.

Elisabete Matos e Robert Dean Smith (I acto)
A produção de Kirchner tem alguns efeitos cenográficos visualmente bonitos e sugestivos e não altera o sentido à história. Em alguns momentos Tristão e Isolda aparecem-nos em duplicado: enquanto os cantores cantam, dois actores representam cenicamente o alter ego de cada um deles, como se vê na imagem do post anterior, o que por vezes resulta interessante mas pode tornar-se também num factor de distracção.
A Orquestra do Principado das Astúrias, não possuindo propriamente dimensões wagnerianas, teve uma prestação notável, dirigida por Guillermo García Calvo, um jovem maestro espanhol de 32 anos que já foi assistente de Thielemann em Bayreuth.
Dos cantores, na generalidade bons, da Brangäne de Petra Lang ao Rei Marke de Felipe Bou, o primeiro destaque vai para o excelente Kurwenal de Gerd Grochowski, repetindo em Oviedo o papel que cantou no Scala para Barenboim, com Waltraud Meier e Ian Storey, na encenação de Patrice Chéreau.
O experiente Robert Dean Smith deu-nos um Tristão lírico, muito bem no I acto e no sublime dueto de amor do II acto. Para os tenores, o III acto de Tristan é um dos mais exigentes da História da Ópera. Além de extenso, requer uma voz heróica que suporte todo aquele sofrimento: ferido de morte, Tristão espera ansiosamente, entre delírios e pesadelos, a chegada de Isolda. Dean Smith foi muito convincente e comovente, embora eu prefira uma voz mais heróica que a dele.
E eis-nos agora chegados ao que nos levou a Oviedo: a primeira Isolda de Elisabete Matos. Dei comigo a pensar se Elisabete Matos não terá andado a esconder ao Mundo que não tem feito mais nada nos últimos tempos senão cantar Isolda. Segundo as suas próprias palavras, uma coisa é cantar, outra é cantar Isolda. Subscrevo. E Elisabete foi Isolda do princípio ao fim. Sem um tremor, sem uma hesitação, atacou Wie lachend sie mir Lieder singen com toda a segurança e deu-nos um monumental Mir laaaaaaacht das Abenteuer e um fulminante Tod uns beiden. Às dificuldades do dueto do II acto chamou amendoins e reapareceu no final do III acto para morrer de amor e seguir a luz do seu Tristão, com uma frescura e uma beleza vocal impressionantes. Aposto que Elisabete trazia um par de sapatos muito confortáveis.

Elisabete Matos e Robert Dean Smith (III acto)

19 comentários:

  1. Grande Elisabete. Por acaso (ou não...) não sabe se há gravações?

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  2. Valeu a pena a ida às Astúrias!!!

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  3. Que belo post!
    Daqueles que nos dá a sensação de ter perdido algo imperdível. Obrigada por acrescentares assim um bocadinho de belo ao nosso mundo.

    (e muito folgo em saber que até tu falas dos sapatos das cantoras...)

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  4. Plácido,
    Não sei. Possivelmente o teatro gravou, ou gravará, uma ou mais récitas para os arquivos.

    Pinguim,
    Se valeu!

    Helena,
    Obrigado. Faz-se o que se pode.

    (os sapatos das cantoras são um elemento fundamental para a qualidade das récitas)

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  5. Muito obrigado por este precioso relato. É, como diz, uma alegria imensa saber-se do sucesso de Elisabete Matos e uma grande tristeza que ela não possa deleitar-nos na sua terra natal!
    Isolda é um dos papeis mais difíceis do reportório operático wagneriano e que satisfação saber que ela o cantou assim. Resta-me a esperança de a poder ouvir no futuro como Isolda. Há tão poucas actualmente...
    Um grande Bravo a Elisabete Matos e a si, Paulo, renovados agradecimentos pela partilha deste texto ímpar.

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  6. Obrigado, FanaticoUm.
    Acredito que a partir de agora Elisabete Matos será convidada para cantar Isolda noutros teatros. Oxalá possamos ir vê-la.

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  7. Anónimo2.2.11

    El reparto fue espectacular, comenzando por Robert Dean Smith, que ofreció un Tristan pleno de voz, algo frío durante los dos primeros actos y plenamente conseguido en el tercero. También dejó muy buena impresión el estreno de Elisabete Matos como Isolda, gracias a unas formidables condiciones líricas que le permitieron salir al paso con holgura de las dificultades del papel. Es posible que su línea vocal se notase algo forzada, pero su interpretación fue de quilates.

    Petra Lang sobresalió todavía más. Poseedora de una voz de mezzo reluciente como pocas y de un talento interpretativo tan acusado que incluso llegó a anular a sus compañeros de escena, Lang dibujó una Brangäne de referencia, todo un lujo para cualquier teatro del mundo.

    También gustó el trabajo de Gerd Grochowski como Kurwenal, un formidable barítono de voz wagneriana, grande y dúctil, que supo acompañar con una gran actuación. Con estos compañeros de reparto resultaba difícil estar a la altura, pero el Rey Marke de Felipe Bou dio el nivel gracias a sus notables dotes, que incluyen una voz de bajo de atractiva y oscura belleza que, aún ligeramente nasalizada, dejó un buen sabor de boca. Javier Galán encarnó a Melot con acierto y Jorge Rodríguez Norton obtuvo una destacada participación como "Un Timonel". Juan Antonio Sanabria obtuvo una correcta participación.

    El Coro de la Ópera de Oviedo volvió a resplandecer cuando todos sus miembros estaban dentro del escenario y se pudo percibir claramente su impactante rendimiento sonoro.

    La dirección de Alfred Kirchner volvió a gustar tan poco como hace tres años. El concepto es abstracto, dentro de una conocida y trillada tradición bastante poco original que, entre otras cosas, encuentra placer simbólico en las líneas de fuga que no se juntan, en clara alusión a la pasión frustrada de los protagonistas. Molestó mucho la idea de desdoblar a los enamorados con una pareja de actores, distrayendo al público respecto al hilo del argumento. Kirchner se inventa un culebrón fuera de lugar en un género como el drama musical, que precisamente se refugió en el mito para huir de lo novelesco porque - Wagner lo repitió hasta la saciedad- distraía del mensaje que se quería transmitir.

    Parece que esta propuesta se creó en su día para facilitar a Jane Eaglen - la cantante que estaba previsto interpretase a Isolda hace tres años - sus movimientos en escena, dada su envergadura y dificultad para desplazarse, pero como la Eaglen acabó por no venir al Campoamor, sustituida por Jayne Casselman, el esfuerzo resultó infructuoso. Lo que no se explica es que se haya mantenido la misma idea, que casi convierte la ópera en una versión de concierto que incluso mantuvo dos atriles dispuestos en las esquinas del escenario.

    Detalles como el sonido del velcro de la falda de la protagonista mientras ésta se la ponía con toda naturalidad, como si no resultase absurdo, o unos trajes pensados con demasiada ligereza, terminaron por deslucir el formidable trabajo musical.

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  8. Paulo, obrigada por partilhares as tuas impressões deste espectáculo que tanto gostaríamos de poder ver em Portugal.
    Fico contentíssima por saber a luz de Elisabete Matos a brilhar por aí. Parabéns, Oviedo.

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  9. Anónimo,
    Obrigado por ter deixado aqui essa crítica, que se refere à récita da estreia, a 27 de Janeiro.

    Gi,
    Quem sabe... Talvez o Teatro de São Carlos, ou outra instituição, resolva convidar Elisabete Matos para cantar.

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  10. Anónimo3.2.11

    Não necessitei de lançar as runas para adivinhar que irias escrever
    tão belo post...
    Obrigada!

    Como estou feliz, pelo êxito de Elisabete Matos no mais longo e dos mais difíceis papéis do grande reportório de soprano.

    Notável, como no espaço de um mês,
    Matos, aborda dois papéis tão diferentes, difíceis e exigentes.

    Um, no mítico e transcontinental Met, numa apoteótica estreia, e aqui, paredes meia com o Portugal, lança-se na mítica e transcendental Isolda.

    Esta Senhora não necessita de filtros mágicos, ela é A MAGIA!

    Sinto-me bipolar,
    ora, felicíssima, ora, rangendo os dentes, porque Portugal não a sabe merecer...

    Falta cumprir-se Portugal, mas,
    Matos sabe cumprir!

    Brava!!!

    Glória

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  11. Subscrevo o artigo do Paulo. Foi exactamente isso que eu senti.
    Ainda bem que pude estar presente na récita de Elisabete de Matos no papel de Isolda.Noite excelentíssima...

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  12. Anónimo3.2.11

    Paulo.
    Obrigada pela partilha de emoções que aqui nos deixas. Deve ter sido uma noite em grande...

    Margarida M

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  13. Especulando...
    Quiçá já se vai definindo a tal "grande produção" de Wagner em S. Carlos para as comemorações do bicentenário de Wagner?...

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  14. Glória,
    Sem mais palavras.

    Miguel,
    Noite excelentissíssima. Voltaria já hoje a Oviedo.

    Margarida,
    FOI.

    Plácido,
    O seu especular tem graça. Continue, talvez no Chiado o ouçam.

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  15. Gracias Paulo por la excelente crónica que he entendido en su integridad.
    Me interesa mucho la Matos wagneriana. Su voz és rica en timbre y armónico, y sobretodo posee la potencia suficiente para traspasar la exigencias orquestales sin gritar.
    Matos siempre interpreta y a su fraseo incisivo, hay que sumar su garra escénica.
    Recuerdo muy gratamente una Sieglinde en el Liceu y me gustaría muchísimo que frecuentara más este repertorio.

    Obrigado

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  16. Obrigado, Joaquim.

    Creio que Elisabete Matos regressará à Isolda. Que tal um convite do Liceu?

    Ouvi a sua Sieglinde num concerto (só o I acto), em Lisboa, e conheço um excerto da Sieglinde do Liceu.

    Aqui fica o registo da Morte de Isolda no ensaio geral em Oviedo.

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  17. Grande malandro, acabou de ficar com os bilhetes do Facebook para o Schicchi!!

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  18. É verdade, Plácido. Domingo à tarde lá estarei.

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  19. Caro Paulo,
    Concretizamos o encontro adiado no intervalo de Domingo, dado que também eu lá estarei?
    Em caso afirmativo, acito sugestões para local.

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