2.1.12

O Concerto de Ano Novo

Jorge Rodrigues tem a palavra:

(Imagem de Hardmusica)
O Concerto de Ano Novo que hoje decorreu no Teatro Nacional de São Carlos foi o melhor início de ano que tive de há muito tempo a esta parte. A coisa explica-se facilmente: uma das maiores cantoras do mundo apresentou-se ali com um programa de arromba, daqueles que precisamente só uma das maiores cantoras do mundo poderia defender. Não apenas pela verdadeira proeza que é cantar completamente à vontade, e gloriosamente, algumas das mais difíceis e escolhosas árias de Verdi e de Puccini (a primeira da Lady Macbeth e o “In questa reggia” da Turandot), mas também pelo verdadeiro feito vocal que é afrontar, depois destes trechos, uma série de árias que obrigam a uma ductilidade, um lirismo, uma leveza de emissão e uma graciosidade que são o oposto musical, dramático e técnico das primeiras – ou seja, uma deliciosa série de páginas de opereta vienense e de zarzuela espanhola. Todas elas foram cantadas como poucas vezes ouvi (e já ouvi muitas!). À extraordinária e única realização musical a grande cantora aliou um completo à vontade e uma veracidade no domínio dramático que transformaram todos os momentos em actos únicos de prazer e de empatia.

Convém agora dizer que esta, que é uma das maiores cantoras do mundo, se chama Elisabete Matos, e que é portuguesa, e que tem nos últimos anos realizado uma carreira que a tem levado aos maiores palcos de ópera do planeta - e não vou nomeá-los para que este texto não se transforme num atlas mundial.

Elisabete Matos é portuguesa e sente muito, e adora, o seu país. O que poderia não acontecer, mas acontece. Prova disso é este concerto. Assim que se anunciaram os dramáticos cortes orçamentais que o São Carlos sofreu – como todas as instituições nacionais – logo Elisabete Matos se prontificou para oferecer ao Teatro um Concerto de Ano Novo cuja receita pudesse ajudar na difícil situação económica. Mais, pediu a um amigo seu, o maestro espanhol Miquel Ortega (que, diga-se, dirigiu fantasticamente o evento), que a secundasse neste gesto e viesse – também graciosamente – participar no concerto. Eu, tal como Amália Rodrigues, não gosto daquelas palavras ou frases muito “grandes” que correm o risco de ficar pequenas, mas atrevo-me aqui a dizer que só artistas com muita alma têm gestos destes. Isto não foi anunciado, obviamente, mas tinha de se saber. Eu sou português, caramba, e como elemento do Coro do Teatro não posso deixar de querer exprimir a minha comoção e o meu profundo agradecimento. Está dito.

Pois o concerto foi um sucesso extraordinário, como há muito tempo não se via em São Carlos. Para já, a tarjeta de “Esgotado” posta dias antes nos cartazes. E depois – e é isso que sempre interessa – a recepção do público; um público verdadeiramente emocionado, vibrante, prestando à cantora ovações delirantes. Foi um fim de tarde verdadeiramente histórico, e este é um Primeiro de Janeiro que nunca esquecerei por mais que viva.

Que fazem perante isto a televisão e a rádio estatais do país? Recorde-se que os contribuintes pagam uma estação televisiva de nome RTP2 que, segundo apregoam, é vincadamente dedicada à cultura, e pagam também uma estação de rádio estatal que há uns anos se dedicava à cultura, de nome Antena 2. Mas, mesmo assim, poderiam ter pensado, sei lá, que talvez fosse bom transmitir o concerto de Ano Novo de Lisboa. Pois não pensaram! Em vez de transmitir a verdadeira alegria que foi termos um São Carlos apinhado por causa de uma portuguesa que é uma das maiores cantoras do mundo, optaram pela transmissão do Concerto de Ano Novo de Viena - aquilo que, embora de grande qualidade, se compra empacotado, não dá trabalho, não faz pensar. Para eles o Chiado é menos português que a Annestrasse!

Cada vez me sinto mais ciceroniano: Até quando abusarão da nossa paciência?

Jorge Rodrigues

21 comentários:

  1. Foi para abrir o ano em grande e para não nos esquecermos deste 1º de Janeiro, que ficará na História do Teatro de São Carlos. Um concerto extraordinário a todos os níveis, que trouxe a casa a baixo como já não se ouvia há muitos anos.

    O que estariam a fazer as cabecinhas pensantes da RTP e da Antena 2 quando não se lembraram da importância da transmissão do concerto é para mim um mistério. Pior, é um escândalo. Subscrevo cada letra que escreveste, Jorge.

    ResponderEliminar
  2. Não fui ver o concerto, com muita pena minha, mas ainda estive na esperança que fosse transmitido na RTP2, o que não aconteceu.
    Olhando para a indiferença com que os noticiários e a televisão/rádio pública tratam esta grande cantora, o que me ocorre dizer é que o nosso país não merece os artistas que tem, é inacreditável!

    ResponderEliminar
  3. Paulo e Jorge: obrigada por este texto. Gostei muito de saber dessa nova faceta, a da imensa generosidade, que até agora não conhecia.
    Que pena Portugal não saber aproveitar e divulgar o trabalho dos seus melhores!

    ResponderEliminar
  4. Ao menos que tivesse sido gravado para posterior apresentação...
    Mas isso só sucede ao Tony Carreira.

    ResponderEliminar
  5. Dei comigo a pensar, que seguramente a Elisabete de Matos teria quase oferecido este concerto, atento o aperto em que vivemos e o preço dos bilhetes. Estava errada. Elisabete de Matos ofecereu o concerto. Grande. Magna. Gloriosa. Que o mundo nunca a esqueça: a ela, à sua voz, à sua magnanimidade e que ela perdoe estes eternos medíocres, voluntários ou involuntários desleixos nacionais.

    ResponderEliminar
  6. Tanta pena de não ter ido...Desleixo meu...e alguma falta de saúde, mas vibrei agora com esta crónica de Jorge Rodrigues, e com a sua fabulosa capacidade de comunicação. Obrigada, Valkirio. Quanto à RTP e Antena 2, não se percebe a surdez mental dos que a elas presidem.

    ResponderEliminar
  7. Que tristeza, esta RTP. Eu vi os dois concertos; tenho pena daqueles (numerosos segundo consta) que não conseguiram arranjar bilhetes e não puderam ver o concerto. Que vergonha, RTP2. Que vergonha.
    E que bravo ao altruísmo da Elisabete Matos. (Do maestro já não digo o mesmo, porque trabalho de casa 0.)

    ResponderEliminar
  8. Raul2.1.12

    Com as maiores desculpas pelo reparo, mas a palavra é importante, pois refere-se a Cícero, o maior prosador das letras latinas. O adjectivo derivativo do seu nome é "ciceroniano", pois constroi-se a partir da declinação "Cicero, Ciceronis", daí que as palavras portuguesas tenham que ter o radical "ciceron-", como por exemplo "cicerone", o "guia", palavra formada porque Cícero foi a referência máxima dos Humanistas durante o Renascimento.

    ResponderEliminar
  9. Obrigado, Raul. Está reparado.

    ResponderEliminar
  10. Obrigado por este texto e Obrigado a Elisabete Matos e ao Maestro pelo grande gesto de apoio ao nosso Teatro de Ópera. Eu, infelizmente, fui um dos que ficou à porta. Estive 1,5 horas a tentar um bilhete de desistência, mas não consegui. Tive muita pena mas só no próprio dia soube que teria disponibilidade para assistir ao concerto. Sabia que estava esgotado ams ,mesmo assim, tentei a minha sorte. Infelizmente em vão (e pela primeira vez na minha vida!). Resta-me o consolo de saber que os que conseguiram assistir, não esquecerão tão depressa o concerto.

    ResponderEliminar
  11. Fica também aqui o pequeno apontamento de reportagem da SIC.

    ResponderEliminar
  12. Lídimo exemplo este de genuína cidadania plasmado na vibrante prosa do inconfundível Jorge Rodrigues. "La Matos" demonstrou ser digníssima tributária de quaisquer homenagens que lhe possam ser rendidas. Estou em crer que a Cultura Portuguesa penhora-se com um tal gesto.

    ResponderEliminar
  13. Caro Paulo,

    encontrei a seguinte ligação: http://www.youtube.com/watch?v=w_c9NC1s1Rw

    Julgo poder documentar a preceito o texto do Jorge Rodrigues.

    ResponderEliminar
  14. Obrigado, Hugo. A preceito! Este foi o último encore do concerto. Veremos se aparecem mais registos.

    ResponderEliminar
  15. Um gesto muito bonito e generoso de Elisabete Matos e do maestro Miquel Ortega. Obrigada por contarem, Paulo e Jorge. Fico contente por ter corrido tão bem.

    ResponderEliminar
  16. Anónimo3.1.12

    Obrigado Paulo, pela partilha do texto e da reportagem. Além da maravilhosa e bela voz a nossa grande Elisabete Matos tem uma alma magnânima! A ver se o seu mérito é finalmente reconhecido em Portugal! Tive pena não estar por Lisboa para poder ir assistir ao concerto. Vê lá se a convences a vir cantar uma ópera ao Kongelige,isso é que era, como sabes tem uma das melhores acústicas do mundo! ;-)
    Abraco, Al

    ResponderEliminar
  17. Al,
    Penso que Elisabete Matos terá todo o gosto em cantar em Copenhaga. Quando isso acontecer, vão ir charters de Portugueses.

    ResponderEliminar
  18. Anónimo4.1.12

    Mais uma vez provado que "os filhos" que o merecem, não tem o país que nos existe!
    Obg amigos
    da bettips

    ResponderEliminar
  19. Foi sem duvida um nobre gesto o de Matos. Tive o enorme prazer de a conhecer no final do concerto e fiquei satisfeito por lhe reconhecer uma grande humildade. Fiquei muito bem impressionado com este gesto. E com a sua Turandot. Por mim, para a proxima temporada, era abrir com chave de ouro e Matos como Turandot!

    ResponderEliminar
  20. ... ou como Isolda, Norma ou Gioconda, caro blogger.

    ResponderEliminar
  21. Foi pelo menos pena não ter sido gravado se não fosse possível a transmissão ao vivo. Só para registo não vejo porque razão se deveria escolher um ou outro (isto em relação a Viena) que transmitissem os dois ... o horário não era de todo o mesmo ! Em todo o caso para sermos totalmente justos foi transmitido no dia 31 o Te Deum em Directo da Igreja de São Roque. Mas sim é uma pena que pelo menos não se tenha feito um registo para posterior emissão (o que exige menos meios).

    ResponderEliminar