24.5.10

Magnânimos

Frederico II da Prússia dizia que D. João V tinha "uma estranha paixão pelas cerimónias de igreja" e que "os seus divertimentos eram as funções sacerdotais, os seus monumentos conventos, os seus exércitos monges e até as suas amantes eram freiras". De facto, como escreve Rui Vieira Nery nas notas ao programa do Concerto Inaugural dos Seis Órgãos da Real Basílica de Mafra, em vez de seguir o modelo da representação laica do Poder ensaiado por Luís XIV em Versailles e desenvolvido pela corte imperial dos Habsburgos em Viena, D. João V prefere adoptar o padrão de uma outra tradição monárquica absoluta que lhe é mais próxima, a da Cúria papal em Roma.
A Basílica de Mafra, com duas tribunas na capela-mor e mais duas em cada braço do transepto, permite-nos pensar num projecto inicial de seis órgãos que só viria a ser concluído mais tarde. Por vontade do rei, a basílica foi consagrada no dia do seu 41º aniversário, em 1730, tendo sido então utilizados três órgãos portativos importados de Itália. Há notícias de seis órgãos inacabados, em 1760, quando já reinava D. José, e da encomenda de seis novos órgãos pelo regente D. João (mais tarde D. João VI), em 1792, inaugurados em 1806 e 1807.
Com a fuga da família real para o Brasil, devido à primeira invasão francesa ainda em 1807, e o longo período de convulsões que se lhe seguiu - desde logo a Guerra Peninsular e, mais tarde, as Guerras Liberais e a extinção das ordens religiosas -, os órgãos de Mafra deixaram praticamente de se ouvir. Ainda chegaram a ser desmontados, tendo em vista a sua renovação, mas apenas cinco foram reconstruídos.
Voltemos às palavras de Rui Vieira Nery: Se o século XIX tivesse conhecido no nosso país o desenvolvimento económico e cultural da Europa romântica e o empenho das elites burguesas cultas no investimento artístico, ao sabor da evolução da estética de vanguarda do tempo, os órgãos de Mafra teriam por certo sofrido intervenções radicais, procurando substituir a sua sonoridade tardo-barroca original por um ideal sonoro mais próximo do da organaria oitocentista (...). Assim, a junção do jacobinismo anti-clerical do Liberalismo português e do consequente desinteresse generalizado da nossa intelectualidade oitocentista pela Arte Sacra com a pobreza endémica do Estado liberal e a sua absoluta falta de preocupação com a preservação do património artístico construído acabou, neste caso, por ter efeitos benéficos. Os órgãos de Mafra permaneceram por conseguinte intocados ao longo de todo o século XIX, com excepção de eventuais pequenas afinações (...).
Graças ao apoio mecenático do Barclays e aos doze anos de trabalhos de restauro do organeiro Dinarte Machado e da sua equipa, os órgãos de Mafra voltaram a tocar juntos, duzentos anos depois. Espera-se que continuem a fazê-lo com regularidade e que continuem dando a conhecer o reportório composto especificamente para eles.
O concerto de inauguração foi a 15 de Maio e teve repetição a 16, 22 e 23. Tocaram os organistas João Vaz, Rui Paiva, António Esteireiro, António Duarte, Sérgio Silva e Isabel Albergaria e participou o Coro Sinfónico Lisboa Cantat, sob a direcção de Jorge Alves.