22.5.08

Jorge Rodrigues fala de Elisabete Matos

Elisabete Matos
(Tosca, II acto - Teatro Nacional de São Carlos)



"ASSIM, SIM!

Não é para me armar em bom, ou em esperto, ou coisa que o valha, mas caíram-me os queixos assim que ouvi Elisabete Matos pela primeira vez num papel de destaque (o que aconteceu no Festival Internacional de Música de Macau em 1993). Não porque estivesse a tentar dar agudos (convém descer os queixos e abrir a goela para o conseguir), mas porque fiquei espantado pela qualidade de uma voz que eu nunca tinha ouvido na sua plenitude. E a partir daí fiquei o que se chama “fan”.
Depois dessa aventura tive a felicidade de a ouvir em inúmeras outras ocasiões, e essa primeira impressão manteve-se, e em crescendo, até aos dias de hoje. Mas nestas coisas, por mais certezas que tenhamos acerca dos nossos julgamentos, nunca estamos seguríssimos dos mesmos. Quer dizer, falhar é humano, e eu sou muito gente. Até que ouvi a Elisabete na Tosca que foi cantada e representada no Coliseu do Porto numa iniciativa do Círculo Portuense de Ópera. E aí mandei às urtigas as dúvidas que pudesse ter acerca de mim próprio. Recordo-me que entrei em histeria – telefonei para toda a gente a dizer que era obrigatório ir ouvi-la, tentei fazer passar esse meu legítimo entusiasmo através de um programa de rádio de que eu era autor na Antena 2 (o Ritornello), e preparei-me para a ouvir onde pudesse. E então foram viagens para o estrangeiro (estou a recordar uma Sieglinde em Sevilha, de cair para o lado, e as vicissitudes que a rodearam. Eu, a Isabel, o Nuno, a Ana Luísa, o António, a Manela, tudo a meter-se em carros, a voar até Sevilha, ouvir a récita, ir cear qualquer coisa a seguir, e vir logo a correr para Lisboa, onde todos tínhamos de trabalhar de manhã. Mas pensam que eu fazia uma coisa destas – eu e todos os que fomos – para ouvir uma ranhosa qualquer?). E foram também inúmeras as idas a concertos por esse país fora (Porto, Guimarães, vários locais em Lisboa, etc.). E a felicidade a continuar!
Havia um senão, enorme, em toda esta felicidade – Elisabete Matos continuava a não cantar em São Carlos um papel a sério; isto é, um daqueles papeis maiores que são oferecidos às divas (poucas pessoas há que merecem este tratamento, mas Elisabete Matos merece-o! – porque divas são as deusas que nos transportam emocionalmente para outras esferas). Um daqueles papeis que pela sua complexidade vocal e dramática só podem ser efectivamente defendidos por quem tenha um material vocal excepcionalíssimo e um material emocional que se traduz em representação de arromba. Embora os cantasse regularmente em palcos como os do Scala, do San Carlo de Nápoles, do La Fenice, etc., etc., etc. E ficava furioso por ela e por mim e pela minha geração: todos estamos prontos a gozar e a rir do modo como trataram Camões, do modo como trataram Viana da Mota, do modo como trataram N gente. E a nossa geração a cair no mesmo. E é isso que me custa, pois eu não quero que me confundam com essa gente que não vê um palmo à frente do nariz e cuja estupidez contamina uma geração inteira. Isto deixava-me absolutamente virado do avesso. Estava a repetir-se aquela merdosa atitude que é comum no nosso país – quem sobressai pela qualidade, zás, é logo atacado. E, invariavelmente, por gente miserável. É que quando me deslocava a Espanha e falava, por exemplo, com o Director do Teatro Real, lá vinha ele com a mesma conversa – “Elisabeta es nuestra!”. Obviamente, eu ficava orgulhoso, mas não deixava de pensar no estuporado país que permitia isto – ainda bem, por outro lado, que Elisabete foi para um país onde as coisas se levam a sério.
E lá começaram a dar-lhe, muito timidamente, alguns papeis em São Carlos – uma Santuzza, uma Sieglinde (mas em concerto), uns concertos, mas nada que enchesse o olho, sim porque eu gosto muito de ver uma siciliana a bater com as mãos no peito, mas aquilo acaba em um acto, não é? Quando começávamos a aquecer lá estava ela a lançar o agudo final e a agradecer. Assim não vale! Eu queria mais!
E surgiu esta Tosca estreada no mês de Maio de 2008! Em São Carlos! Aleluia!
Não há palavras para descrever o que eu – e todo o público – temos sentido. Digo apenas uma coisa: penso com toda a sinceridade que neste momento no mundo não há nenhuma Tosca superior ou comparável à de Elisabete Matos. Depois de ouvir a estreia fiquei imediatamente com essa certeza. Revi mentalmente os sopranos em actividade no mundo e, repito, nenhuma há que se lhe compare.
E passo a explicar.
Vocalmente falando Elisabete Matos está numa forma absolutamente excepcional. Sim porque a voz é de si excepcional, mas neste momento é uma excepcionalidade em forma excepcional. Os agudos da mulher! Há quem considere esta conversa dos agudos uma coisa superficial, simplista, e se ria de quem por eles se entusiasma – é gente muito superior a nós, infinitamente culta, com uma tal sensibilidade que não lhes permite aguentar tudo o que é força da natureza. Pois eu respondo-lhes: vão zurrar para outro lado. É que essa conversa da treta mais não é do que uma estupidez abissal, reles, e rasca – porque os compositores não colocaram essas notas impossíveis na partitura porque lhes apeteceu. Numa obra de arte – como são as óperas de Verdi, Puccini, Wagner, Bellini, Mozart, Strauss, Mussorgsky, etc. – tudo é orgânico e o facto de no III Acto a palavra “lama” (“lâmina”) ser dita com um dó agudo não é inocente, o facto de a Turandot ter de se lançar para a estratosfera ao cantar “Quel grido” não é inocente, o facto de a Azucena ter de lançar um si bemol ao cantar “sei vendicata o madre”, também não é inocente. Só perfeitas bestas é que não entendem isto. Mas infelizmente há bestas que zurram muito alto e muitas bestas há prontas a ouvi-las… O agudo é um elemento dramático e musical importantíssimo, fundamental, e ouvir uma Tosca que não tenha esse registo agudo seguro é o mesmo que ir ver um Benfica / Porto com os jogadores todos a coxearem. É que Tosca sem agudos é futebolista coxo, desculpem lá. Mesmo que não percebam o que eu digo, tentem decorar!
Mas não são só – obviamente – agudos! É todo um material vocal perfeitamente dominado, com uma igualdade esplendorosa, com um registo grave sem ser forçado e que arrepia pelo dramatismo que consegue imprimir a uma frase, é a construção da linha melódica, é a coragem. Sim, a coragem! Porque estar num palco é como estar num circo: há quem faça saltos mortais sem rede e há quem necessite de rede. Elisabete Matos canta sem rede, isto é, entrega-se toda ao papel e isso faz com que nunca se poupe. E isso é, acreditem-me, a melhor coisa que se pode ver – um artista que se dá todo em palco, sem pudor. Obviamente que para isso é preciso técnica, técnica e mais técnica (recordo sempre o que Edita Gruberova me disse uma vez: só a técnica liberta!), e ter alma, e mais alma, e mais alma.
E aqui chegamos ao elemento dramático, cénico. E a Tosca de Elisabete Matos também me desfez nesse aspecto. É um personagem perfeitamente pensado, coerente, sentido, verdadeiro. Ela consegue aquilo que poucas conseguem, isto é, faz-me acreditar naquilo que estou a ver. Sofro horrores por ela, estou aflito com ela, apetece-me no II Acto entrar pelo palco dentro agarrar no Scarpia e desfazer-lhe o focinho a pontapés. É isto, percebem, que eu gosto de sentir em ópera – comover-me até às lágrimas com o que vejo e ouço! E isso, meus amigos, só cantores excepcionais é que conseguem. Exemplos de total mestria dramática: o dueto de amor do I Acto, em que ela surge solta, alegre, feliz, e mesmo o arrufo “atavantico” é uma coisinha que percebemos ligeira; a entrada no II Acto, em que o gesto é lento, redondo, estudado, pensado, como um animal que está com medo que lhe façam mal; a expressão com que fica quando se deita no chão no final do mesmo II Acto. E no III Acto? A explosão de felicidade quando chega junto de Cavaradossi para lhe anunciar a “liberdade”. A mulher é de chorar!
E posto isto, e porque não quero maçar ninguém, fica aqui um conselho: não deixem de tentar ir a São Carlos antes do fim desta série de Toscas com a Elisabete Matos. Não deixem mesmo! Quem avisa, amigo é!"

Jorge Rodrigues