Por falta de tempo, ou de disposição, ainda não tinha escrito sobre o final da tetralogia "O Anel do Nibelungo" no Teatro de São Carlos. Rapidamente e em forma quase telegráfica, eis a minha opinião sobre este "Crepúsculo dos Deuses":
Da encenação de Graham Vick
- A sensação que fica é a de que o senhor não gosta de Wagner e, por isso, sempre que a orquestra toca um interlúdio (a Viagem de Siegfried no Reno, a Marcha Fúnebre de Siegfried), aparece uma movimentação de figurantes barulhentos com a única função de distrair o espectador, não vá ele aborrecer-se.
- O final engendrado pelo encenador deturpa completamente a visão que o compositor e libretista Richard Wagner nos queria transmitir: após a imolação de Brünnhilde e o incêndio de Walhall, com o decorrente fim dos deuses, Gutrune mata Hagen e suicida-se (!). Para quem foi, ou for, a São Carlos, aqui fica o aviso: a história não acaba assim. Com a sua ganância pelo poder do anel, Hagen segue as Filhas do Reno, que o recuperaram das cinzas de Brünnhilde, e é arrastado por elas para as profundezas do rio. É também óbvio que Wagner nunca imaginou que o mundo dos deuses pudesse acabar com um par a dançar uma valsa. Fará sentido?
Do maestro e da orquestra
- Na récita a que assisti (15 de Outubro), foi a orquestra o que mais me impressionou. Parece-me que o maestro Letonja e a própria orquestra têm vindo a assimilar a música de Wagner e estiveram muito bem, principalmente a partir da morte de Siegfried e até à cena final. Um ou outro deslize não comprometeram a récita.
Dos cantores
- Susan Bullock, embora com algumas dificuldades ao longo da récita (a voz denotou alguma estridência), compôs muito bem a sua dificílima cena final.
- Stefan Vinke tem uma voz fortíssima mas não é agradável e falta-lhe o lirismo necessário ao dueto do prólogo. No entanto, esteve melhor que em "Siegfried", onde o seu papel é muito mais exigente.
- Sónia Alcobaça poderá ainda não ter a voz totalmente madura para o papel de Gutrune e, dependendo do local onde se está sentado no teatro, é mais ou menos abafada pela orquestra (um problema que se generaliza aos restantes cantores, devido à deslocalização do palco para a plateia - uma ideia interessante de Vick, mas que provou ter um efeito nefasto logo no início de "O Ouro do Reno", a menos que o espectador privilegie o efeito teatral e se esteja nas tintas para as notas que Wagner passou décadas a escrever).
- Julia Oesch é a valquíria Waltraute, irmã de Brünnhilde, com quem canta uma cena fundamental para o desenrolar da acção e da música. Graham Vick lembrou-se agora que podia utilizar bailarinos no papel de cavalos e ela entra em cena montada nos ombros de um rapaz. O efeito é interessante, ela é jovem, loura, magra, tem aquilo a que sói chamar-se uma cinturinha de vespa, e deve ter sido essa a razão que levou à sua escolha para o papel. Não vejo outra, uma vez que ela mal se ouvia.
- Johann Werner Prein continua a ser um Alberich competentíssimo.
- De Michael Vier (Gunther) e de James Moellenhoff (Hagen), nada a acrescentar.
- Nornas e Filhas do Reno, enfim.
Susan Bullock (Brünnhilde)
Grane (o cavalo de Brünnhilde)
Sónia Alcobaça (Gutrune)
Alberich (Johann Werner Prein)
e o filho Hagen (James Moellenhoff)
e o filho Hagen (James Moellenhoff)
(Imagens da página do Teatro Nacional de São Carlos no Facebook)
Adenda 1: Segundo informa a Renascença, a récita de dia 27 de Outubro será transmitida também via Internet, com legendagem em Português, em www.saocarlos.pt.
Adenda 2: Um dos figurantes caiu no fosso num dos momentos em que o chão se abre para entrarem ou saírem pessoas e objectos. Espero que não tenha ficado muito magoado.
Adenda 2: Um dos figurantes caiu no fosso num dos momentos em que o chão se abre para entrarem ou saírem pessoas e objectos. Espero que não tenha ficado muito magoado.
Até que enfim, o teu precioso comentário. Apesar de tudo, valeu a pena, não? Talvez também escreva alguma coisa sobre o assunto, enquanto partilha de experiências. Mas ando tão preguiçosa para blogar...
ResponderEliminarBjs.
Valeu, sim. Apesar de não concordar com as opções, assistir ao crescimento de um Anel é uma experiência única.
ResponderEliminarAguardo a tua opinião.
Obrigado pelo post.
ResponderEliminarSinto-me então contente por si, eu receava o descalabro de vozes e orquestra.
Tinha gostado imenso da encenação de Vick para a Flauta Mágica, afinal não há encenadores perfeitos...o que o Paulo descreve é grotesco.
O que mais me custa ter perdido são as vozes, se afinal eram de nível razoável / bom. Ainda bem para o S. Carlos. Afinal era o ponto alto da temporada.
Abraço
Mário,
ResponderEliminarAs vozes estiveram razoáveis, embora não extraordinárias.
No Inverno passado assisti à estreia da nova produção de Götterdämmerung em Viena e a encenação não tinha interesse nenhum (esta, por outras razões, é péssima, na minha modesta opinião, mas desperta algum interesse). Porém, a orquestra da Ópera de Viena, com músicos da Filarmónica, tem uma sonoridade magnífica e o maestro era Franz Welser-Möst. Perante isto, quem é que quer saber de encenações?
Houve um grande senão, coisa que todas as belas têm: a cantora que desempenhava o papel de Brünnhilde era Eva Johannsen e não estava à altura da personagem. Apraz-me confessar que temos uma Brünnhilde melhor que a de Viena, numa época em que parece não haver muitas cantoras que possam lidar convenientemente com as dificuldades do papel (vocalmente e não só).
Alguns cantores eram medianos, excelente foi o Hagen de Eric Halfvarson. E o Siegfried de Stephen Gould é um dos melhores da actualidade (vai ser também ele o Eneias dos Troianos de Valência, em que Elisabete Matos será Cassandra).
Ainda Vick. Vi o Werther e Manon Lescaut encenados por ele em Lisboa e também não me convenceram.
Obrigado pelo comentário, Mário.
Esperava muito este teu relatório. Se bem percebo, é um balanço entre algumas coisas surpreendentemente bem (a orquestra), outras más (cantores inaudíveis) e outras assim-assim.
ResponderEliminarNo cômputo geral, talvez não fique com muita pena de não poder ir, mas tentarei apanhar a transmissão de 27.
No cômputo geral, eu teria muita pena de não ter visto, Gi. Apesar de todos os aspectos negativos que encontro no Anel de Vick, a música é superlativa e é muito difícil sair perfeita em qualquer parte do mundo. Viena tinha a orquestra ideal mas os cantores nem por isso. E quanto a encenações, estamos conversados.
ResponderEliminarAcabei de ver o crepúsculo e concordo consigo no que aos interlúdios diz respeito, nomeadamente como aconteceu no Siegfried. Nesta sinceramente não me pareceu que fosse assim. Quanto à valsa. Ela não está na música? Então porque não dançá-la? Vick tem um profundíssimo sentido cénico, isso por vezes perturba a música, mas é sempre muito belo.
ResponderEliminarPor vezes julgo é que não fica bem, sei lá, falar-se bem das coisas, e depois Wagner (que até fez um teatro para esconder a orquestra?!!!).
Como é possível por ex. falar-se mal da encenação do Wherter? Uma história datada, que nada tem a ver com o nosso tempo e que afasta o espectador do que se passa em cena, e Vick consegue, genialmente, trazê-la para o nosso tempo, mesmo no limite recorrendo aquela alteração da cena final maravilhosa.
O sucesso deste anel é muito do Graham Vick.
Xico,
ResponderEliminarO sucesso deste Anel parece-me muito relativo. Não sei se os aplausos foram estrondosos na récita a que assistiu, mas no dia 15 não foram. O final de uma tetralogia de sucesso, e após quatro horas e meia de música, exige que o público não arrede o pé do teatro. Pelo que sei, as récitas não têm estado esgotadas, ao contrário do que sucedeu anteriormente, o que pode significar um cansaço por parte do público em relação ao conceito de Vick. Após uma cena final desastrosa (a opinião é minha), o público limitou-se a aplaudir a primeira volta dos artistas e, ainda eles se retiravam, já as palmas enfraqueciam. Parece-me muito pouco para uma tetralogia de sucesso.
Se reler o que eu escrevi, há-de reparar que não digo mal porque gosto de dizer mal. Aplaudo alguns aspectos deste "Crepúsculo" (a orquestra, alguns cantores - saliento a generosidade de Susan Bullock e de Stefan Vinke, ambos de uma entrega total à causa mesmo quando em prejuízo próprio), mas as minhas referências vocais e cénicas são outras.
Diz que Vick tem um profundíssimo sentido cénico, isso por vezes perturba a música, mas é sempre muito belo. A minha opinião é outra: profundíssimo sentido cénico ele tem, mas raramente é belo e sofre de muitas incongruências. E isto levar-nos-ia agora a uma outra discussão: o que é o belo?
Ainda sobre o Werther, por que razão uma história perfeitamente romântica afastará o espectador, a menos que se lhe dê algo visualmente muito atraente? O cenário era belíssimo, de facto, mas o drama do jovem Werther encaixa-se mal num melodrama dos anos 1950. Perde credibilidade, acho eu. E não pense que eu sou um fervoroso adepto de encenações à Zeffirelli. Acho é que actualizar a história de uma ópera requer um génio que não reconheço a Graham Vick.
Paulo,
ResponderEliminarEm primeiro lugar obrigado por replicar.
Talvez tenha razão, e eu seja só um deslumbrado das encenações de Vick. Mas a verdade é que o sou. Não gosto das encenações de Zeffirelli e quanto ao Wherter não foi o cenário que me encantou, que era belo de facto. Foi transformar uma história já muito pouco credível num drama pungente de pessoas dos nossos dias. A sua aproximação ao cinema, etc. Conheci velhas assim, que viveram atormentadas até ao fim dos seus dias pelas escolhas que fizeram. São coisas destas que Vick sabe agarrar tão bem. Por causa daquela velha fui obrigado a soltar duas ou três lágrimas. Coisa de sentimentalão, dir-me-á, mas o que é o Wherter? (e eu que detesto o raio da história mais o seu romantismo)
Também gostei da orquestra!
Quanto ao falar mal, que me perdoe, mas acontece às pessoas que, entendendo muito de certos assuntos, perdem por isso a espontaneidade das crianças pelo deslumbramento e maravilhamento, sempre preocupadas em racionalizarem as opções. Não sendo eu criança, sou contudo ignorante nos aspectos mais musicais, talvez por isso o deslumbramento.
Cumprimentos,
Estivemos ontem no Crepúsculo. Embora, em geral, não concordemos contigo no que respeita à encenação deste Anel, ficámos muito decepcionados com aquela imolação. Para nós, o ciclo esteve cheio de soluções entusiasmantes. Por isso, esperávamos um verdadeiro estrondo no fim do mundo, que fizesse justiça à intensidade musical e dramática. Ora, se a valsa sobre os destroços no minuto final nos pareceu muito bem como anti-clímax, ficou a faltar o clímax. Os figurantes pegando nas mochilas pareciam estar a partir para um acampamento de finalistas. Talvez a ideia que foi descartada antes da estreia, a do suicídio colectivo em cena, tivesse sido mais eficaz. Do nosso ponto de vista – o de quem globalmente gostou muito da encenação – só falta, na reposição do Anel completo que se anuncia para 2011, dar a volta a este final para acabar a jornada sem mágoas.
ResponderEliminarTem toda a razão PV. Soube pôr o que eu não consegui. A valsa senti-a exactamente como anti-climax, mas faltou o climax. Diríamos que o mundo acabou não num grande estrondo mas num suspiro pífio. Quem não conhecer a obra não percebe de todo o que vai naquelas mochilas!
ResponderEliminarSó uma achega, que nem é minha, visto não perceber nada da coisa: Encenadores sem cultura ou cheios de ideias falsas fazem os deuses e os heróis wagnerianos arrastar-se por terra, mobilizam-nos ao serviço das ideologias do momento. É um contra-senso grosseiro. [...]
ResponderEliminarClaude Lévi-Strauss, Olhar Ouvir Ler, Ed.Asa, Pg.106
E eu que passei todo o Anel no fosso???Também gostava de ter visto alguma coisa e..."nicles"!Como só posso falar da parte musical,sinceramente acho que,houve algum progresso qualitativo por parte da OSP comparativamente com o ano passado.Pelo que já li,também estão de acordo comigo.Temos duas senhoras à frente da OSP-Maestrina Titular e Concertino-que estão a pôr as coisas na ordem,principalmente as cordas.Ainda vai levar o seu tempo.Espero por isso,muitas mais melhorias musicais durante esta temporada e que os meus caros amigos não tenham razão de queixa no que toca ao desempenho da OSP.A ver(e ouvir)vamos!Aproveitem para ir ver também os concertos sinfónicos no CCB ou no S. Carlos.Temos estado a tocar para "as moscas" e isso é muito desmotivante para nós.
ResponderEliminarSaudações Musicais
Não, obrigado!
ResponderEliminar:)
Paulo, a encenação do Werther que menciona é a mesma que foi utilizada em Viena com o Alvarez e a garanca?
ResponderEliminarBlogger,
ResponderEliminarPenso que não. Deve estar a referir-se a uma encenação de Andrei Serban, que também deslocou a acção para os anos 1950.
ah então é isso. fiz confusão. porque essa de Andrei Serban agradou-me bastante
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