Elisabete Matos, Ekaterina Semenchuk e Aquiles Machado |
Roma é eterna. Já correu muita água sob as pontes que atravessam o Tibre desde que o vi nos últimos dias de Outubro, mas as pedras da Roma imperial lá estarão a contar a História de sempre e Santa Teresa continuará em êxtase. As cúpulas erguem-se imponentes, poderosas, cobrindo as pinturas e as talhas mais assombrosas que olhos humanos possam admirar. As cores de Roma, as praças de Roma, as fontes de Roma, os pinheiros de Roma, as esculturas de Michelangelo nas igrejas de Roma, Roma.
Havia quase vinte anos que não se ouvia "La Gioconda" em Roma. A última Gioconda tinha sido Ghena Dimitrova; agora foi a vez de Elisabete Matos, que já antes cantara o papel em Tóquio, aí interpretar a personagem da cantora de Veneza que se suicida para não cair nas mãos do pérfido Barnaba. Ponchielli compôs a música para o libreto de Tobia Gorrio (pseudónimo de Arrigo Boito) baseado numa obra de Victor Hugo. A sinopse pode ser lida aqui.
Madre! Enzo adorato! Ah come t'amo!
Como convém, a acção desenrola-se num crescendo dramático de grande intensidade, com uma descontracção visual pelo meio, característica da Grande Ópera à francesa - a Dança das Horas -, culminando no IV acto com o anúncio do suicídio por Gioconda e, finalmente, a sua morte.
Talvez deva começar por dizer que o espectáculo, no seu todo, foi um sucesso enorme. A encenação de Pier Luigi Pizzi é tradicional, com cenografia e guarda-roupa simples e pouco aparatosos, mas eficazes e evocativos das pontes, das gôndolas e das festas da Veneza do século XVII. A orquestra, dirigida por Roberto Abbado, sobrinho de Claudio, soou sempre muito bem, afinada e certinha. No entanto, uma ópera como "La Gioconda", que anuncia o verismo, parece-me pedir uma leitura menos rígida e um pouco mais de emoção.
Tive a oportunidade de assistir a duas das quatro récitas do elenco principal, que se apresentou muito equilibrado e com cantores de grande nível. Elisabetta Fiorillo, no papel de La Cieca, tem uma voz de contralto profunda e enorme; Ekaterina Semenchuk, mezzo-soprano russa, dispõe de um timbre quente e penetrante e compôs uma belíssima Laura; Roberto Scandiuzzi, um baixo de voz nobre, com vários Filippo II e Boris Godunov no currículo, é um Alvise imponente; o barítono Claudio Sgura foi o vil Barnaba, impressionante tanto vocal como cenicamente; Aquiles Machado pode não ter o tipo de voz ideal para interpretar Enzo Grimaldo, mas vestiu muito bem a personagem e esteve em grande forma; dos papéis secundários, destaque para Enrico Iori - que foi Filippo II no "Don Carlo" de Lisboa - como Zuane.
Terminemos em grande, com a nossa Gioconda, porque é um privilégio ver e ouvir Elisabete Matos num dos papéis maiores do reportório de soprano dramático. A Gioconda exige uma cantora que detenha graves potentes, agudos cintilantes e um registo médio seguro. Em troca, oferece-lhe dificuldades técnicas várias, principalmente no IV acto. E foi aqui que Elisabete Matos conseguiu exceder-se a si própria. Depois de um Suicidio arrepiante, deu-nos mais uma série de momentos brilhantes na cena com Enzo e Laura (imagem no topo) e assim continuou, crescendo até ao encontro final com Barnaba (Ora posso morir).
Volesti il mio corpo, demon maledetto? E il corpo ti do!
(Si trafigge nel cuore col pugnale.)
Numa época em que pairam nuvens negras sobre os teatros (as de lá menos negras que as nossas) e em que o futuro se mostra incerto, e tendo em conta que não haverá dinheiro para grandes produções no Teatro de São Carlos, se me deixassem mandar, esta Gioconda viria a Lisboa, nem que fosse em versão de concerto.
Que pena não te deixarem mandar!
ResponderEliminarObrigada pelo relato: gostei muito. Faltou aí a secção Caras, mas nem todos nascem para chinelo, é o que é... ;-)
Pois é, Helena, não deixam. A ti também não. Temos de viver com este drama.
Eliminar(hehehehe)
EliminarObrigado pelas informações Paulo.
ResponderEliminarQue bom saber de tantos cantores que passaram por cá na altura em que tínhamos ópera no TNSC como a Fiorillo que cantou a Ulrika, o Aquiles Machado que ouvi pela primeira vez na Lucia com a Sumi Jo, e o Enrico Iori que impressionou muito positivamente no D. Carlos. Melhor ainda saber do sucesso da matos que me parece que encontra na Gioconda um papel adequadissimo ao seu perfil vocal e à sua sensibilidade.
O Edgardo que vi na "Lucia" de Sumi Jo era José Bros, se a memória não me falha. Mas lembro-me de Aquiles Machado na "Navarraise". Já de Elisabetta Fiorillo não me lembro de todo. Não devo ter visto esse "Baile de Máscaras.
EliminarLembro-me que na noite em que vi a Lucia (Jo), Aquiles Machado substituiu o tenor previsto (não me recordo do nome e não tenho o programa perto) e foi uma surpresa agradável.
EliminarObrigado pela informação, António Fonseca.
EliminarCom certeza que EM foi brilhante, como sempre.
ResponderEliminarDeslumbrante.
EliminarObrigado pelo (prometido) relato, Paulo. E ainda bem que foram récitas memoráveis! É, de facto pena, que não possa mandar e influenciar a vinda deste espectáculo ao TNSC, mesmo que em versão concerto. De todos os cantores que referiu, j´s ouvi alguns deles e um não me deixou saudades - Aquiles Machado. Mas talvez este papel seja mais adequado à sua voz.
ResponderEliminarPenso que o papel de Enzo não será dos que mais se adequam à voz de Aquiles Machado, mas ele defendeu-o muito bem e esteve em grande forma.
EliminarParece-me que esse foi um fim-de-semana em cheio.
ResponderEliminarNão tendo dúvidas do que dirias da Elisabete Matos :-), estava com muita curiosidade sobre o resto: a produção, o elenco, o maestro.
E Roma sempre encantadora, pelos vistos :-)
Foi, Gi. Só tinha estado em Roma uma vez, no milénio passado. Poder visitá-la agora, com o valor acrescentado de Vermeer e da Gioconda, foi, tipo, Euromilhões.
EliminarElisabete Matos estará, indubitavelmente, no ápice das suas faculdades vocais, facto que, considerando a qualidade intrínseca do instrumento da intérprete, a alcandora a uma triunfante abordagem de alguns dos mais emblemáticos papeis do cânone dramático na tessitura à qual se encontra associada: Gioconda, Norma, Minnie, Abigaille, Lady Macbeth, Turandot ou Kundry.
ResponderEliminarVersão concerto... onde é que se assina a petição?
ResponderEliminarBdA
'bora criar uma, Bosc?
Eliminarencenada! ;)
EliminarSim o Aquiles Machado substitui o Jose Brós numa das récita da Lucia. O Baile de Máscaras que referi foi o ùltimo que tivemos no S. Carlos com a April Milo, o O' Neill, a Fiorillo, Cantarelo e o baritono era o Lado Ataneli, salvo erro.
ResponderEliminarJá sei, João. Não estava cá.
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