Faz muito bem o Prado. A história d'O Vinho da Festa de São Martinho, cujo Verão se quer quentinho, foi contada aqui pelo El País (de onde vieram as imagens). Pieter Bruegel, o Velho, pintou.
24.10.10
23.10.10
17.10.10
Maria Cristina de Castro
A voz a Luís Castanheira:
Quando o meu querido amigo Paulo Almeida me sugeriu que estivesse à vontade para dizer aqui o que me apetecesse sobre a Cristina, fiquei lisonjeado. Só que falar da Cristina, para mim, é muito complicado. Pelo menos para já, ou não tivesse ela sido uma das pessoas mais importantes da minha vida. Falar dela é falar de mim. Tudo o que eu dissesse neste momento seria uma mistura das nossas vidas, e a minha não tem interesse nenhum. Por esses terrenos já entrou o Jorge Rodrigues, e fê-lo tão bem como eu nunca seria capaz de fazer. Prefiro fazer outra coisa, que é presentear-vos com uma pérola da minha arca de recordações.
Trata-se de um registo feito às dez da manhã, num auditório um pouco inóspito para o género, com um frio de rachar, e a Cristina, que preparava o seu primeiro ensaio para um recital daí a dias, dava curvas pelo palco, de preferência encostada aos aquecedores de botija para não arrefecer. Devemos ter em conta que, para além das condições que já descrevi, a Cristina estava há muitos anos afastada dos palcos; só cantarolava nas aulas.
Aqui ainda não sabíamos que haveria de ser um excelente teste para o reaparecimento em publico. Claro que o som é péssimo, com um gravador amador que era o que havia à mão, mas a Cristina gostava de se gravar, para se corrigir se fosse o caso, à semelhança da Cossotto, que sempre o fazia quando ensaiava. É que ela aprendeu com os grandes, ora lá está! É na segunda parte do ensaio que aborda o reportório de coloratura, e não é que não houvesse frases notáveis, mas trata-se de um primeiro ensaio com muitas repetições e alguns enganos também da pianista, que fazia a sua primeira leitura. Peço desculpa, mas essa parte é só para mim.
Parece que a estou a ouvir:
– Ó filho, não mostres isso que não está em condições.
- Então não está? É só o primeiro aquecimento e já tão bem.
- A voz está fria, tenho de cantar muito até estar pronto.
- Não houve interrupções, correu tão bem.
- És mesmo maluco!
– Ó filho, não mostres isso que não está em condições.
- Então não está? É só o primeiro aquecimento e já tão bem.
- A voz está fria, tenho de cantar muito até estar pronto.
- Não houve interrupções, correu tão bem.
- És mesmo maluco!
Trinta anos depois, a voz das Rosinas e de outras agilidades deu lugar a uma voz muito mais encorpada, e embora tratando-se de uma canção sem grandes malabarismos difíceis, como o fazia sempre, percebe-se que quem anda muito bem de bicicleta nunca se esquece e, ao virar da primeira esquina, já se equilibra perfeitamente como se dela nunca tivesse saído. Quando se foi uma cantora assim, que mal começa o ensaio consegue logo uma atmosfera, vale a pena testemunhá-lo.
Sei que não ficará aborrecida comigo porque sabe que o faço porque a amo. Afinal, a um filho tudo se perdoa.
Até já, MEU AMOR, até já, como gostavas tanto de dizer.
Luís Castanheira
Ma rendi pur contento, de Bellini (ensaio):
Ária de Musetta, seguida de Deh! Torna, mio bene, de Heinrich Proch, em gravações mais antigas:
Cada dia é mais evidente que partimos,
Sem nenhum possível regresso no que fomos.
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudade nem terror que baste.
Sophia de Mello Breyner Andresen
14.10.10
A Cristina morreu!
Cristina de Castro com Maria Callas (Traviata de Lisboa)
(Imagem de Opera per Tutti)
(Imagem de Opera per Tutti)
Jorge Rodrigues recorda a cantora e professora Cristina de Castro, que faleceu na passada terça-feira, 12 de Outubro.
A Cristina morreu!
Perdoe-se-me este desabafo despropositadamente familiar, mas não há volta a dar. Quando soube da morte dela, revoadas de memórias me assaltaram, a maior parte delas situadas na sala de sua casa em Campo de Ourique, onde tive, dadas por ela, as primeiríssimas aulas de canto. Eu tinha-lhe sido recomendado por um amigo então comum, e teria uns 18 anos. Curiosamente, descobri logo nos nossos primeiros contactos a coincidência de ambos fazermos anos a 7 de Janeiro, com a exacta diferença de 30 anos. A partir daí deglutimos em comum alguns jantares de aniversário.
Foi nessa sala que me comecei a embrenhar em assuntos – muito – sérios: saber estar num palco e o que significa exprimirmo-nos em cima dele com a voz; saber que o que interessa verdadeiramente nesta profissão é o público, e absolutamente mais ninguém, pois nenhum crítico há que consiga roubar um milionésimo que seja à felicidade que constitui um triunfo de público; saber que se deve ter um respeito absoluto pelos grandes expoentes da profissão; e, acima de tudo, saber que o nosso duca, signore e maestro é sempre o compositor.
Ela era também uma Professora fora de série no que concerne à sua absoluta entrega aos alunos. A todos os níveis, científico e pessoal. As minhas aulas, às terças e sextas, acabavam quase invariavelmente num restaurante quase em frente à sua casa, onde almoçávamos. Aí comi dezenas de alheiras com ovo estrelado, muitas delas pagas por ela, que, para além de nunca me ter aceitado um tostão por qualquer aula (agora posso dizê-lo, Cristina), ainda me pagava o almoço. Assinado: Maria Cristina de Castro.
Eu por essas alturas tinha tempo. Não sei o que foi sucedendo à minha vida, mas nos anos de juventude fartava-me de fazer coisas e tinha tempo para tudo, hoje não tenho tempo para nada! E com o tempo que então tinha, ficava muitas vezes a assistir a aulas de outros alunos. Gostava muito quando por lá aparecia o José Fardilha – o Zé – que me deixava esmagado pela potência, extensão e beleza da voz. Eu, que me esfalfava todo para dar um ré, um mi, ficava siderado com os lás bemóis, dados, assim, facilmente, ao meu lado. Eu estava a descobrir este mundo.
Cena típica:
- Ó Zé, foi lindo esse sol!
- Não foi nada, Cristina, foi uma porcaria, estava forçado!
Olhavam para mim. Para mim, o chavalo!, como se eu pudesse ser juiz naquelas, para mim altíssimas, contendas! Recordo que ficava sempre para morrer, sem saber que dizer – mas, obviamente, dizia:
- Eu achei fantástico!
Bem, o Zé parecia aceitar.
- Ó Zé, vês? Eu se te digo que está bem, é porque está! Tens de confiar em mim. Vá lá, vamos descer agora e depois fazemos outro vocalizo.
Recordo o Átila, um cão medonho, que gostava de morder em alguns alunos e que por vezes até na dona o fazia. Assim que ouvia tocar à porta punha-se do lado de dentro a rosnar ferozmente, mostrando uns dentes que lhe saíam dos beiços, dois de um lado e um do outro. Recordo cenas inacreditáveis, como a Cristina a ir buscar pedaços de carne ao frigorífico para com eles fazer um carreiro que levava à cozinha. O Átila atirava-se à carne, cujo último pedaço era lançado para o ponto da cozinha mais afastado da porta. Assim que ele voava para a carne, a Cristina fechava a porta aceleradamente. Ficava a casa em paz, podia prosseguir-se com a aula! Curiosamente, o Átila gostava de mim, e quando eu estava a assistir a aulas de outros alunos, sentado, num sofá que ficava do lado direito da Cristina, ele tinha por vezes – se o aluno lhe agradava – permissão de entrar. Colocava então a cabeça entre as minhas duas apavoradas pernas, olhando para mim com uma doçura irreal.
Recordo as pesquisas a gavetas e recantos, pejados de memórias líricas. A Cristina, sabendo reconhecer (ela tirava radiografias mentais às pessoas) a minha paixão, ia por vezes comigo visitar os programas, as fotos, as dedicatórias que ela tinha pela casa. Agarradas a estes objectos, milhares de memórias de astros com que cantou – Simionatos, Ghiaurovs, Corellis, Krausses, etc., etc. Eteceteras que significavam uma gloriosa galeria de cantores, alguns dos maiores da segunda metade do século XX. Eu deslumbrava-me com essas recordações!
Recordo que a Cristina manejou o canto com grandes seres – com Bechi, por exemplo – e esteve, nos inícios da carreira, ao lado de monstros sagrados. Quem teve a sorte de poder estar presente no camarim de Gwyneth Jones depois de esta ter cantado em concerto em São Carlos, nos anos 80, poderia vê-la em amena cavaqueira com a Cristina. Porque ambas disputaram em Inglaterra, em inícios de carreira, um Concurso de Canto. Gwyneth Jones ganhou o primeiro prémio, mas a Cristina ficou em segundo. E recordavam-no ali.
Será bom não esquecer a realidade portuguesa dos anos 50 e 60. Em São Carlos, salvas raras excepções, que começaram a ser mais numerosas e efectivas nos Anos 60 e nos Anos 70 antes do 25 de Abril, era vedado aos cantores portugueses o manejo dos grandes papéis operáticos. A Cristina, que teve os primeiros anos de carreira nos Anos 50, ainda apanhou o teatro querendo ouvir só vedetas. O São Carlos nos Anos 50, falo da temporada oficial, era um bastião estrangeiro, com director português. Mas os melhores cantores portugueses cantavam papéis mais secundários ao lado dos grandes craques. E a Cristina cantou com todos eles, em centenas de récitas de que tive ecos através dela.
Foi assim que a Cristina cantou ao lado de Maria Callas, em Março de 1958, fazendo a Annina. Nunca será demais magnificar a adoração que ela tinha por Callas. Falava dela sempre esmagada, com uma admiração sem nenhum, repito, nenhum limite. Adorou-a, ainda por cima, como ser humano. Um facto muito engraçado: ela não admitia nenhuma crítica à voz e à arte de Callas. Quando começavam, tipo Ricardo Araújo Pereira, naquela coisa de: Ai, mas a desigualdade; ai, mas o timbre, e coisa e tal… a Cristina cortava cerce. Repetia que a Callas era a maior, que não tinha defeitos, e desinteressava-se da conversa, numa espécie de voltar costas mental. Eu adorava isso.
Se eu já adorava Callas, o que também me uniu à Cristina nos primeiros tempos, fiquei a conhecer outras facetas da grande cantora em testemunho vivo. Um testemunho da minha professora!
Depois, os estudos com a Cristina acabaram, são coisas da vida, mas ela continuou, no Conservatório e, depois de se reformar, em casa, a receber alunos que vinham do ensino (pois as gargantas dos professores sofrem muito), do teatro, do canto, obviamente, sei lá eu de onde eles vinham. Foram centenas! Ela, também, nunca recusava ajudar, e tinha com a juventude um contacto facílimo. Quase toda a gente neste país passou pelo seu ensino, num momento ou outro, com mais ou menos frequência.
Isto porque a Cristina era verdadeiramente uma artista, e estes têm um coração e um cérebro sempre jovens. Há neles uma loucura, um modo algo descentrado da vida dos normais humanos que apaixona e brilha. Recordo, por exemplo, que uma vez ela foi jantar a minha casa em Benfica. Foi de carro, sozinha, e ao sair eu dei-lhe indicações de como chegar a casa. No outro dia apanhámos uma barrigada de riso: saída das portas de Benfica para ir para Campolide, deu por ela em Carcavelos, sem saber como lá tinha ido parar.
Conto todas estas cenas, porque foram as que me irromperam, assim de repente. E poderia ficar aqui a escrever páginas e páginas de memórias, muito mais concretas e numerosas. É a quantidade imensa de memórias que me faz sentir o quanto gosto de alguém.
E da Cristina eu sempre gostei muito, muito.
Ai, os gostares! - como escreveu Guimarães Rosa.
E como ela gostava também muito das pessoas de quem gostava, creio que escolheu a data em que morreu. Por amizade.
Eu explico: a grande adoração da Cristina era Callas. Tenho para mim que, quando soube da morte de Sutherland, a Cristina resolveu morrer, para que não se falasse tanto da australiana. É que esta, em Portugal, também cantou uma única vez e, tal como Callas, a ópera La Traviata de Verdi. E, não apenas pelo supremo brilhantismo com que o fez, mas também pelas circunstâncias históricas em que decorreu a última récita – na noite de 24 de Abril de 1974 – será talvez a única cantora que poderá fazer empalidecer um pouco a magnitude da Traviata de 58. E a Cristina não esteve para isso. Morreu. Pelo menos sabia que em Portugal, no seu Portugal, a notícia da sua morte ia desviar as atenções da – lamentável – morte de Sutherland.
Estou a imaginar o Céu, por esta altura. A Callas, sentada, vendo aparecer a Cristina:
- Annina, donde vieni?
- Da Lisbona.
- Oh, Lisbona…
E ainda por lá estão à conversa.
Jorge Rodrigues
Cristina de Castro fala sobre a experiência de ter cantado com Maria Callas:
Una voce poco fa, por Maria Cristina de Castro, em 1958. Gravação gentilmente cedida por Luís Castanheira.
(Imagem de Víctor Carneiro - FB)
11.10.10
La Stupenda
Era o ano de 1988 e Novembro corria frio e molhado em Barcelona. Comprámos o Guía del Ocio para nos inteirarmos do que se passava na cidade e ficámos a saber que Joan Sutherland e Alfredo Kraus cantavam "Lucia di Lammermoor" nessa noite. Ora... e bilhetes? pensámos, desanimados. Dirigimo-nos à Praça da Catalunha e começámos a descer as Ramblas até nos depararmos com o Gran Teatre del Liceu.
Por desfastio, embora descrentes, perguntámos na bilheteira se ainda haveria dois bilhetinhos para mais logo. Para nosso grande espanto e felicidade, havia, sim, poucos e com visibilidade reduzida.
No velhinho Liceu, antes do incêndio, havia duas entradas: a boa, na Rambla dels Caputxins, e a dos pobrezinhos, no Carrer de Sant Pau. Subimos as escadas até ao topo e tomámos os nossos lugares. Quase podíamos tocar no tecto. Do cenário víamos pouco mas isso não importava. Se nos empoleirássemos ligeiramente, por vezes até conseguíamos ver a Lucia e o Edgardo. E quando eles cantavam, apesar de já terem ambos passado o apogeu havia muito, o teatro inteiro vibrava. A Cena da Loucura de Lucia deixou o público em delírio. No final de uma récita inesquecível, o Liceu inteiro saiu à Rambla em euforia. Dois anos mais tarde, Joan Sutherland retirou-se dos palcos. Ontem, retirou-se da vida.
Como Lucia, em Covent Garden (1959)
(Imagens daqui)
(Imagens daqui)
A Cena da Loucura, como Joan Sutherland a cantou em Barcelona em 1988:
A Teresa é uma das maiores fãs de Dame Joan Sutherland que conheço. Leia aqui as suas entradas sobre La Stupenda, nomeadamente a que fala da sua experiência em Lisboa, quando cá cantou "La Traviata", em Abril de 74.
ADENDA: A Antena 2 tem disponível online o Império dos Sentidos de hoje. Paulo Alves Guerra e João Pereira Bastos falam de Joan Sutherland e deixam-nos ouvir excertos das suas gravações e de uma interessante entrevista concedida por Dame Joan ao próprio João Pereira Bastos, com perguntas fornecidas por Jorge Rodrigues para o programa "Vozes de São Carlos", de que era autor.
1.10.10
O Prazer da Música
Uma proposta para o Dia Mundial da Música: Maria João Pires com Trevor Pinnock e a Orquestra de Câmara da Europa, no concerto de 29 de Setembro na Cité de la Musique, em Paris. Vá a 2 para aceder ao Concerto para Piano nº 27 de Mozart e não perca os encores a quatro mãos, em 3, se quer perceber o que é o prazer de fazer música.
Adenda: o Concerto nº 27:
Adenda: o Concerto nº 27:
Reminiscências
Como se esperava, o recital de Artur Pizarro - ontem no CCB (o primeiro da Integral da Obra para Piano de Chopin) - foi excelente. Não estive lá mas sei. A Antena 2 distribuiu-o pelos lares de quem não coube no Pequeno Auditório ou mora longe, por exemplo, no Algarve. Foi assim que sentimos juntos, eu aqui e a Gi lá, a grande vontade de partilhar esta minha viagem à descoberta de Chopin com o público português. Esteja, pois, atento às datas. Se o CCB não reprogramar a série de recitais de Artur Pizarro para o Grande Auditório, o que seria uma dádiva de inspiração divina, poderá sempre ouvi-los na Antena 2, que prometeu transmitir a Integral em directo.
(Excerto do álbum "Reminiscences")
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