17.10.10

Maria Cristina de Castro

A voz a Luís Castanheira:

Quando o meu querido amigo Paulo Almeida me sugeriu que estivesse à vontade para dizer aqui o que me apetecesse sobre a Cristina, fiquei lisonjeado. Só que falar da Cristina, para mim, é muito complicado. Pelo menos para já, ou não tivesse ela sido uma das pessoas mais importantes da minha vida. Falar dela é falar de mim. Tudo o que eu dissesse neste momento seria uma mistura das nossas vidas, e a minha não tem interesse nenhum. Por esses terrenos já entrou o Jorge Rodrigues, e fê-lo tão bem como eu nunca seria capaz de fazer. Prefiro fazer outra coisa, que é presentear-vos com uma pérola da minha arca de recordações.
Trata-se de um registo feito às dez da manhã, num auditório um pouco inóspito para o género, com um frio de rachar, e a Cristina, que preparava o seu primeiro ensaio para um recital daí a dias, dava curvas pelo palco, de preferência encostada aos aquecedores de botija para não arrefecer. Devemos ter em conta que, para além das condições que já descrevi, a Cristina estava há muitos anos afastada dos palcos; só cantarolava nas aulas.
Aqui ainda não sabíamos que haveria de ser um excelente teste para o reaparecimento em publico. Claro que o som é péssimo, com um gravador amador que era o que havia à mão, mas a Cristina gostava de se gravar, para se corrigir se fosse o caso, à semelhança da Cossotto, que sempre o fazia quando ensaiava. É que ela aprendeu com os grandes, ora lá está! É na segunda parte do ensaio que aborda o reportório de coloratura, e não é que não houvesse frases notáveis, mas trata-se de um primeiro ensaio com muitas repetições e alguns enganos também da pianista, que fazia a sua primeira leitura. Peço desculpa, mas essa parte é só para mim.
Parece que a estou a ouvir:
– Ó filho, não mostres isso que não está em condições.
- Então não está? É só o primeiro aquecimento e já tão bem.
- A voz está fria, tenho de cantar muito até estar pronto.
- Não houve interrupções, correu tão bem.
- És mesmo maluco!
Trinta anos depois, a voz das Rosinas e de outras agilidades deu lugar a uma voz muito mais encorpada, e embora tratando-se de uma canção sem grandes malabarismos difíceis, como o fazia sempre, percebe-se que quem anda muito bem de bicicleta nunca se esquece e, ao virar da primeira esquina, já se equilibra perfeitamente como se dela nunca tivesse saído. Quando se foi uma cantora assim, que mal começa o ensaio consegue logo uma atmosfera, vale a pena testemunhá-lo.
Sei que não ficará aborrecida comigo porque sabe que o faço porque a amo. Afinal, a um filho tudo se perdoa.
Até já, MEU AMOR, até já, como gostavas tanto de dizer.

Luís Castanheira

Ma rendi pur contento, de Bellini (ensaio):

Ária de Musetta, seguida de Deh! Torna, mio bene, de Heinrich Proch, em gravações mais antigas:
Cada dia é mais evidente que partimos,
Sem nenhum possível regresso no que fomos.
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudade nem terror que baste.

                                     Sophia de Mello Breyner Andresen

7 comentários:

  1. Que bonito.
    Outra belíssima homenagem.

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  2. Ma rendi pur contento, arietta, Vicenzo Bellini podia ser a legenda do primeiro registo.

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  3. Obrigado, Bartolomeu.

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  4. Paulo,

    isto comoveu-me.

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  5. Luis que bonito e que comovente, obrigado por partilhares....

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  6. Andei a ler, a informar-me, a comover-me...
    Obrigada Paulo, Luis C. e J.Rodrigues. Se não servisse para mais nada, este meio servia para dar relevo às coisas que verdadeiramente nos unem.
    Abraços

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  7. Bettips,
    Obrigado pelas tuas palavras sempre tão bonitas. E, neste caso, junto o meu agradecimento ao teu e vão ambos para o Jorge e para o Luís.

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