8.3.13

O Testamento do Mestre

Jonas Parsifal Kaufmann

cerca de treze doze anos (em Fevereiro de 2001), o Teatro de São Carlos apresentou um "Parsifal" memorável, dirigido por Zoltán Peskó Gabor Ötvös, com Poul Elming e Eva Marton. A encenação, não sei já de quem (de Thomas Kiemie), vinha importada da Alemanha e era feia como estas tempestades de Março, mas o nível musical foi de excelência. [Agradeço a ajuda de Elvira Ferreira, que me permitiu corrigir e completar a informação. Elvira Ferreira foi uma das magníficas Raparigas-Flores nesta produção.]

Assistir a uma récita de "Parsifal" é uma experiência que não se esquece. A última ópera de Richard Wagner transporta-nos para o universo místico do Graal e para uma espiritualidade que vai para além do cristianismo, e não é preciso ser crente para sentir a busca do divino. Essa procura contínua, incessante, pressente-se ao longo da composição que talvez melhor sintetize a obra de Wagner. É um testamento. As várias harmonizações à volta dos motivos que surgem no prelúdio do I acto e que reaparecem, desenvolvidos e transformados, ao longo de toda a ópera - como quem procura, procura, mas não sabe exactamente o quê, não resolve e volta atrás -, fazem da partitura de "Parsifal" a criação mais sublime do Mestre de Bayreuth.

Agora, graças à Fundação Gulbenkian, pudemos ouver em directo, em Lisboa, o "Parsifal" do Met, que tem dado muito que falar, ou não fossem o tolo puro e Gurnemanz interpretados por Jonas Kaufmann e René Pape.

Gurnemanz (René Pape) e a Irmandade do Santo Graal (I acto) (© BBC Radio 3)

Jonas Kaufmann e René Pape com o cisne morto (I acto) (© BBC Radio 3)

Nos intervalos, as opiniões sobre a encenação dividiam-se; já sobre o que se ouvia parecia haver mais consenso. Pela minha parte, habituado que estou a desgostar das encenações, achei esta, de François Girard, muito boa nos actos I e III, com cenários despojados mas cheios da atmosfera criada pelas projecções em pano de fundo. A essência de "Parsifal" estava lá, a evocação dos rituais da Irmandade do Graal através dos movimentos coreografados sublinhava o aspecto meditativo e denso da partitura, e o homem do jogo, Peter Mattei, deu-nos uma interpretação magnífica, também do posto de vista cénico, do sofrimento de Amfortas.

René Pape - FB)

Peter Mattei e René Pape (I acto)

Peter Mattei - o homem do jogo (III acto) (© BBC Radio 3)

Preferia que o santuário do Santo Graal se encontrasse no castelo medieval de Monsalvat, porém "Parsifal" é uma missa intemporal, um festival sacro, e a actualização não desvirtuou o sentido da história e, acima de tudo, não estragou a música. No entanto, o II acto é outra conversa. Inundar o chão de sangue e transformar as raparigas-flores em belas vampiresas - ou então o que eram? -, além do desconforto que há-de causar aos cantores, rouba à cena o ambiente de sedução que está definido no libreto e na música. Por alguma razão Richard Strauss, quando esteve em Sintra, terá imaginado a Pena como cenário ideal para o jardim mágico e o castelo de Klingsor. Klingsor, por sinal, foi o excelente Evgeny Nikitin, o tal da história das tatuagens. O papel assenta-lhe como uma luva.

Evgeny Nikitin (© BBC Radio 3)

Cena de Parsifal e Kundry (Katarina Dalayman) no II acto:




Mas o que se ouviu foi muito bom, por vezes sublime. Daniele Gatti, optando em várias ocasiões por tempos mais lentos do que é habitual ouvir-se em "Parsifal", deu-nos uma versão maravilhosa, graças à qualidade da orquestra e dos cantores em geral. Naturalmente, há que dar o desconto à batota da amplificação das vozes. As últimas transmissões do Met a que tinha assistido na temporada passada foram-me tão cansativas que decidi fazer greve, abrindo a excepção óbvia no Sábado passado. Em boa hora.

(A BBC Radio 3 ainda nos deixa ouvir a transmissão por mais um dia.)

P.S. Como diz o Joaquim, una camisa blanca, ben entallada i planxada, dóna una prestància i elegància a qui la porta, del tot recomanable.



21 comentários:

  1. Mais um ou dois posts deste género, e convences-me a tentar descobrir as óperas de Wagner!
    Por enquanto ainda não lhes encontrei a magia. Falha minha, claro. Mas mais um ou dois posts deste género, e ainda me converto!
    :)

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    1. Se não sentires a chamada não vás lá, se bem que me faça espécie as pessoas gostarem de música e não gostarem de Wagner.

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  2. Caro Paulo,

    na produção do "Parsifal" levada à cena em São Carlos, no ano de 2001, a direcção orquestral encontrava-se, salvo erro, a cargo de Gabor Otvos.

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    1. Tem razão, Hugo. Peço desculpa pelo lapso e vou já tratar de emendar. Estava convencido de que o maestro tinha sido Peskó e não tinha como comprovar porque não sei onde pára o programa de sala.
      Obrigado pela correcção.

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    2. Caríssimo Paulo,

      aproveitava o ensejo para inquiri-lo relativamente a uma outra produção wagneriana em São Carlos, designadamente, os Mestres Cantores de 1998, protagonizados por Bernd Weikl, Michael Pabst, Gwynne Geyer, Roy Stevens e Lani Poulson, sob a égide de Gregor Buhl. Existiria alguma possibilidade de identificação do intérprete de Pogner?

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    3. Esse programa encontrei-o logo! Pogner foi interpretado por Hans Tschammer. Se a memória não me falha, foi também ele que cantou Gurnemanz em 2001.

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    4. Grato pela celeridade do "feedback".

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    5. Ora essa, caro Hugo.

      (Só espero que a memória não me falhe no caso de Gurnemanz como falhou em relação ao maestro.)

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    6. Absolutamente, caro Paulo.

      Hans Tschammer interpretou, de facto, Gurnemanz no Parsifal aludido, integrando um elenco composto por Poul Elming, Eva Marton, Siegfried Lorenz, Robert Holzer e Karsten Mewes.

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    7. Obrigado mais uma vez, Hugo.

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  3. Eu gostei muito do que ouvi. Do que vi, menos, mas achei aceitável. Como dizes, não desvirtuou o sentido da história nem estragou a música (depois conto o que no Scala fizeram ao Holandês...)
    Já no terceiro acto, estava demasiado esgotada para apreciar.

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  4. Excelente texto Paulo, obrigado.. Estou de acordo com as suas apreciações.

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    1. Obrigado, Fanático_Um. Também li a sua opinião sobre a amplificação das vozes. Bem sei que tem que se fazer, mas muitas vezes elas soam-me demasiado artificiais.

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  5. J Ildefonso9.3.13

    Olá Paulo. Ainda bem que fala na amplificação das vozes nas transmissões do Met porque achava que era embirração minha porque não gosto do meio e sinto-me muito estúpido na Gulbenkian sem saber se estou a ver um video ou um filme mas com a certeza que não estou a ver uma ópera nem a escutar um disco. Acho tudo muito artificial mas... como nunca viajei a terras americanas nem pus os pés no Met guardei a minha opinião para mim até ao momento. Pessoalmente prefiro um recital assim/assim do que uma transmissão do Met.

    Lembro-me muito bem do Parsifal. Foi a estreia da Marton num dos papeis que nasceu para cantar convencida a ensaia-lo em Lisboa graças à sagacidade do então Director do S. Carlos. Bons tempos em que tinha-mos ópera em Lisboa e no entanto eram tantas as pessoas que se queixavam e que desvalorizavam o que cá se fazia com um orçamento não propriamente sumptuosa.

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    1. Bons tempos, sim.
      Penso que Eva Marton estreou a Kundry cá e só voltou a cantá-la em Barcelona. Não sei se a informação é correcta.

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    2. Na realidade, a ordem é inversa: Eva Marton estreou-se no papel de Kundry em Barcelona, no mês de Dezembro de 1998, pese embora, não possa precisar se a apresentação em causa tenha ocorrido em forma encenada ou concertante.

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    3. Isto hoje está-me a correr tão mal.

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  6. Ouvi essa produção de São Carlos,estava esgotado e consegui entradas para o ensaio geral. Magnífica de facto. Só um reparo: as tempestades de Março são mais belas do que aquela encenação, cenografia e guarda roupa.

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  7. Olá, Paulo
    Só hoje vi o seu post. E partilho-o em outras paragens...
    Para mim, esta récita foi um esplendor. A do São Carlos, há uns anos, também foi impressionante, não obstante os aspetos que referiu, menos conseguidos, da encenação, mas foi memorável.
    Agora esta, para mim, foi completamente wagneriana ( no sentido de nos querer converter a uma comunhão estética e espiritual), no 1.º e 3.º atos, foi fortíssima, metafísica, reforçada pela encenação, pela cenografia, pelo desenho de luz, totalmente dirigida uma contemporaneidade que perdeu todas as referências, que está moribunda e à espera de uma qualquer estocada final. Olhe, Paulo, adorei...
    Continuação de boas récitas e Boa Páscoa!
    Elsa Mendes

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