Poker Scene in Act II of La Fanciulla del West (Elizabete Matos / Lucio Gallo - MET)
24.12.10
22.12.10
L'amore è un'altra cosa
Mais logo, quando forem as oito da noite em Nova Iorque, sobe o pano do Met para a estreia de Elisabete Matos. Ela será Minnie, em "La Fanciulla del West", em dia de aniversário de Puccini.
Toi toi toi.
21.12.10
20.12.10
Don Carlo na Gulbenkian
Fui para a Gulbenkian cheio de vontade de gostar e gostei. Bem sei que sou suspeito, que "Don Carlo" é a minha ópera preferida de Verdi; longa como convém, ao menos sai-se de barriguinha cheia. Mais ainda se a esplêndida orquestra do Met é dirigida por um jovem enérgico como Yannick Nézet-Séguin, de quem eu nunca antes tinha ouvido falar.
Yannick Nézet-Séguin |
Agora, os técnicos de som responsáveis pelas transmissões em directo do Met deviam rever a questão das vozes. Se a voz desinteressante e incaracterística de Poplavskaya é pequena e a de Keenlyside talvez também não seja muito grande, já as de Alagna e de Smirnova são enormes e surgiram com um volume quase assustador por cima da orquestra. Dito isto, vamos ao que interessa, que já passou mais de uma semana.
Simon Keenlyside |
O mais gratificante foi rever Roberto Alagna (Carlo) num dos papéis da sua vida e notar que recuperou a forma. Sem a frescura de há catorze anos, esteve glorioso nas cenas com Keenlyside (Rodrigo) mas não só. Disse o crítico a propósito da estreia: whenever he was joined by the baritone Simon Keenlyside, who sang Rodrigo, the Marquis of Posa and Carlo’s devoted friend, Mr. Alagna opened up in every way.
Keenlyside convenceu mais pelas suas excelentes capacidades cénicas que vocalmente. Esteve muito bem no primeiro dueto com Carlos e, no IV acto, excedeu-se na cena da morte.
Não encontro expressividade nem voz em Marina Poplavskaya (Elisabetta) que justifiquem o seu sucesso em Londres e Nova Iorque. No tempo em que vivemos, o da ditadura do visual, talvez a principal razão seja a sua figura ficar bem no ecrã. Eu prefiro uma cantora que tenha voz para o papel.
A personagem da Princesa de Eboli foi interpretada por Anna Smirnova, dona de uma voz impressionante mas pouco flexível e por vezes fora de tom e descontrolada, como no terceto com Carlos e Rodrigo - Trema per te.
O duelo dos baixos Ferruccio Furlanetto (Filipe II) e Eric Halfvarson (Grande Inquisidor) é um dos momentos-chave de "Don Carlo". Acontece imediatamente a seguir a Ella giammai m'amò, a grande ária do rei de Espanha. Não terá sido inesquecível, mas ambos cumpriram os respectivos papéis muito dignamente, embora de ambos já transpareça um certo cansaço vocal. Em 2008, em Londres, foi assim:
19.12.10
Vício da Arte?
Imagino que serão muitos os ouvintes da Antena 2 que nos últimos anos se fartaram e passaram ao estado de ex-. Se exceptuarmos uma ou outra transmissão em directo e as Questões de Moral de Joel Costa, pouco sobra por lá que valha a pena ouvir. É dessa penúria em que se tornou a dita antena que Jorge Rodrigues fala no seu blogue.
8.12.10
Prima alla Scala - II
O Joaquim (In Fernem Land) já deu a sua opinião catalã sobre a estreia de "Die Walküre", ontem, no Scala de Milão, com ligações para a descarga dos três actos. Pelo que vi e ouvi (III acto, em directo pelo Mezzo), tendo a concordar com ele. Resumindo: não entendo por que razão envergam as Valquírias aqueles trapos que tanto atrapalham e Nina Stemme esteve em grande forma como Brünnhilde, como podemos ouvir num dos excertos com que o Joaquim ilustra o seu post.
Nina Stemme como Brünnhilde
7.12.10
Prima alla Scala - I
7 de Dezembro de 2010:
Primeiro foram os protestos à porta do Teatro alla Scala. Depois foi o ataque de Barenboim aos cortes do governo de Berlusconi na Cultura. Finalmente ouviu-se A Valquíria.
30.11.10
Peter Hofmann (1944-2010)
Em 1976, na produção de Patrice Chéreau para a comemoração do centenário d'O Anel do Nibelungo, em Bayreuth, coube a Peter Hofmann o papel de Siegmund (em "Die Walküre"). Ainda em Bayreuth interpretou Parsifal, Lohengrin e Tristan, mas a sua carreira de tenor heróico não seria longa. Nos anos 1980/90, Peter Hofmann passou por vários géneros mais ligeiros, incluindo o rock e o teatro musical, e terminou oficialmente a carreira em 2004.
Os últimos anos da sua vida foram acompanhados pela doença de Parkinson, pela pobreza e pelas pensões sociais (segundo um artigo em Der Tagesspiegel de 2006). Faleceu na noite passada.
Mais logo
Hoje é o dia do III recital de Chopin por Artur Pizarro no CCB e eu tenho um bilhete para a Salinha Eduardo Prado Coelho, onde cabem uns trezentos e tal espectadores bem aconchegadinhos. Convém, porque as noites estão frescas. E porque Pizarro rapidamente esgota salas mas o CCB não lhe deu o Grande Auditório, onde muitos mais admiradores seus poderiam ouvi-lo ao vivo, a Antena 2 transmitirá o recital em directo, embora sem as cores. É às nove da noite e o programa é este:
PROGRAMA
Variations brillantes, em Si bemol maior, sobre Je vends des scapulaires,
op. 12
5 Mazurcas, op. 7
Valsa, em Sol bemol maior, op. 70 n.º 1
Nocturno, em Dó sustenido menor
4 Mazurcas, op. 6
3 Nocturnos, op. 9
Introdução e Rondo, op. 16
12 Estudos, op. 10 .
A Fantaisie-Impromptu, em Dó sustenido menor, op. 66, fica para o IV recital.
25.11.10
Lá vai dardo
(fonte)
A Helena, a Io e a Gi são umas queridas, em verdade vos digo. No momento da escolha do alvo a abater fizeram pontaria para aqui e agora valha-me Santa Irene, que qual São Sebastião me sinto, todo trespassadinho pelos dardos que aqui me chegam do palrador 2 Dedos de Conversa, do apaixonado Amor e Outros Desastres e do prazenteiro Garden of Philodemus. Todos eles blogues imprescindíveis e de visita diária, quer preguicem quer furem greves. Dardos portanto de volta para eles, em contra-ataque, com os devidos agradecimentos pela distinção e pela óptima companhia em que colocaram o valkirio.
Aqui fica o texto que acompanha o prémio:
O Prémio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc... que, em suma, demonstrem a sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre as suas letras e as suas palavras. Estes selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre blogueiros, uma forma de demonstrar o carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web.
E agora lanço eu um dardo ao Bandeira ao Vento. Embora ele já esteja furado, há-de caber-lhe mais um selo na colecção.
ADENDA: Posso lançar mais um dardinho? Então é para os Amigos do Botânico, que não se cansam de lutar por ele, e para relembrar a quem ainda não assinou a Petição em defesa da Missão do Jardim Botânico e da sua sustentabilidade ambiental (...) que já é tempo de o fazer.
24.11.10
Don Carlo
O tema Don Carlos já aqui respondeu várias vezes à chamada e hoje resolveu reaparecer.
Verdi compôs a ópera "Don Carlos" originalmente com cinco actos e libreto em Francês, a partir do poema de Schiller, mas ainda durante os ensaios para a estreia em Paris (1867) viu-se obrigado a fazer cortes na partitura. Actualmente, com dois intervalos, uma récita ainda é coisa para durar umas magníficas quatro horas e meia bem contadas.
Um dos trechos sacrificados foi Qui me rendra ce mort?, que Filipe II cantaria depois da morte de Rodrigo. Essa melodia foi mais tarde reciclada pelo compositor, que a adaptou ao Lacrimosa do seu Requiem.
Ao longo de quase duas décadas sucederam-se alterações à partitura de "Don Carlos". Para Itália Verdi apresentou uma versão em quatro actos, já em Italiano, nascendo assim "Don Carlo", e ainda uma outra com cinco actos. Por esta e por outras razões - não existe uma versão definitiva -, há quem considere "Don Carlo" uma ópera com muitas imperfeições.
Em 1996 Paris e Londres puderam assistir ao "Don Carlos" mais próximo daquilo que Verdi inicialmente idealizou: um "Don Carlos" quase wagneriano. Nessa produção de Luc Bondy, apresentada no Théâtre du Châtelet e depois em Covent Garden, foram utilizados vários fragmentos entretanto encontrados em arquivos. Um exemplo é Qui me rendra ce mort?, que José van Dam interpretou como se ouve e vê aí em cima.
Roberto Alagna, que se estreou no papel de Don Carlos nessa produção memorável, repetindo-o em Londres, não voltou a cantá-lo até à passada segunda-feira, em Nova Iorque, desta vez em Italiano (crítica em The New York Times). No próximo dia 11 de Dezembro ele estará simultaneamente no Met e na Avenida de Berna e os bilhetes estão quase esgotados.
Simon Keenlyside interpretou em Londres (2009) a personagem de Rodrigo, Marquês de Posa, na nova produção de Nicholas Hytner que agora está em Nova Iorque. Também ele virá à Gulbenkian.
Pode ler o argumento da ópera, resumido por Margarida Lisboa, no sítio da Antena 2.
A última vez que se viu "Don Carlo" em Lisboa parece ter sido em 1977. Do elenco faziam parte Mara Zampieri (Tu che le vanità, no Coliseu dos Recreios, com o característico acompanhamento), Cesare Siepi, Viorica Cortez e Elsa Saque. Já era tempo de se pensar nele a sério outra vez.
ADENDA: Um cheirinho do dueto (FB) de Don Carlo e Rodrigo (Alagna e Keenyside) no Met e um outro do dueto de Carlo com Elisabetta:
19.11.10
16.11.10
Assinar pelo Jardim Botânico
A Plataforma em Defesa do Jardim Botânico de Lisboa* lançou a Petição em Defesa da Missão do Jardim Botânico e da sua sustentabilidade ambiental, social e económica a longo prazo. Revisão imediata do Plano de Pormenor do Parque Mayer, Jardim Botânico, Edifícios da Politécnica e Zona Envolvente.
Porque é importante, pode ler o texto, assinar a petição e divulgá-la. São precisas 4000 assinaturas.
*Associação Árvores de Portugal, APAP - Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas, Associação Lisboa Verde, Cidadãos pelo Capitólio, Fórum Cidadania Lx, Grupo dos Amigos da Tapada das Necessidades, Liga dos Amigos do Jardim Botânico, OPRURB-Ofícios do Património e da Reabilitação Urbana, Quercus-Núcleo de Lisboa
10.11.10
Leiloe-se.
Se o país fosse uma obra de Warhol, ou um vaso chinês do século XIV, ainda poderíamos leiloá-lo na Sotheby's, cujos clientes andam uns verdadeiros mãos-largas. Este vaso, que pertencia a um coleccionador português, tinha um valor estimado em 400 000 a 600 000 libras esterlinas mas o preço praticamente sextuplicou - mais de 2 600 000 libras.
Mais doce que as rosas
Andreas Scholl, que nasceu numa pequena cidade rodeada de vinhas e à beira do Reno - tudo isto há-de ter jogado a seu favor -, faz hoje anos. Herzlichen Glückwunsch!
Ide lá ouvê-lo.
Sweeter than roses
Sweeter than roses, or cool evening breeze
On a warm flowery shore, was the dear kiss,
First trembling made me freeze,
Then shot like fire all o'er.
What magic has victorious love!
For all I touch or see since that dear kiss,
I hourly prove, all is love to me.
4.11.10
24.10.10
Vinho Novo
Faz muito bem o Prado. A história d'O Vinho da Festa de São Martinho, cujo Verão se quer quentinho, foi contada aqui pelo El País (de onde vieram as imagens). Pieter Bruegel, o Velho, pintou.
23.10.10
17.10.10
Maria Cristina de Castro
A voz a Luís Castanheira:
Quando o meu querido amigo Paulo Almeida me sugeriu que estivesse à vontade para dizer aqui o que me apetecesse sobre a Cristina, fiquei lisonjeado. Só que falar da Cristina, para mim, é muito complicado. Pelo menos para já, ou não tivesse ela sido uma das pessoas mais importantes da minha vida. Falar dela é falar de mim. Tudo o que eu dissesse neste momento seria uma mistura das nossas vidas, e a minha não tem interesse nenhum. Por esses terrenos já entrou o Jorge Rodrigues, e fê-lo tão bem como eu nunca seria capaz de fazer. Prefiro fazer outra coisa, que é presentear-vos com uma pérola da minha arca de recordações.
Trata-se de um registo feito às dez da manhã, num auditório um pouco inóspito para o género, com um frio de rachar, e a Cristina, que preparava o seu primeiro ensaio para um recital daí a dias, dava curvas pelo palco, de preferência encostada aos aquecedores de botija para não arrefecer. Devemos ter em conta que, para além das condições que já descrevi, a Cristina estava há muitos anos afastada dos palcos; só cantarolava nas aulas.
Aqui ainda não sabíamos que haveria de ser um excelente teste para o reaparecimento em publico. Claro que o som é péssimo, com um gravador amador que era o que havia à mão, mas a Cristina gostava de se gravar, para se corrigir se fosse o caso, à semelhança da Cossotto, que sempre o fazia quando ensaiava. É que ela aprendeu com os grandes, ora lá está! É na segunda parte do ensaio que aborda o reportório de coloratura, e não é que não houvesse frases notáveis, mas trata-se de um primeiro ensaio com muitas repetições e alguns enganos também da pianista, que fazia a sua primeira leitura. Peço desculpa, mas essa parte é só para mim.
Parece que a estou a ouvir:
– Ó filho, não mostres isso que não está em condições.
- Então não está? É só o primeiro aquecimento e já tão bem.
- A voz está fria, tenho de cantar muito até estar pronto.
- Não houve interrupções, correu tão bem.
- És mesmo maluco!
– Ó filho, não mostres isso que não está em condições.
- Então não está? É só o primeiro aquecimento e já tão bem.
- A voz está fria, tenho de cantar muito até estar pronto.
- Não houve interrupções, correu tão bem.
- És mesmo maluco!
Trinta anos depois, a voz das Rosinas e de outras agilidades deu lugar a uma voz muito mais encorpada, e embora tratando-se de uma canção sem grandes malabarismos difíceis, como o fazia sempre, percebe-se que quem anda muito bem de bicicleta nunca se esquece e, ao virar da primeira esquina, já se equilibra perfeitamente como se dela nunca tivesse saído. Quando se foi uma cantora assim, que mal começa o ensaio consegue logo uma atmosfera, vale a pena testemunhá-lo.
Sei que não ficará aborrecida comigo porque sabe que o faço porque a amo. Afinal, a um filho tudo se perdoa.
Até já, MEU AMOR, até já, como gostavas tanto de dizer.
Luís Castanheira
Ma rendi pur contento, de Bellini (ensaio):
Ária de Musetta, seguida de Deh! Torna, mio bene, de Heinrich Proch, em gravações mais antigas:
Cada dia é mais evidente que partimos,
Sem nenhum possível regresso no que fomos.
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudade nem terror que baste.
Sophia de Mello Breyner Andresen
14.10.10
A Cristina morreu!
Cristina de Castro com Maria Callas (Traviata de Lisboa)
(Imagem de Opera per Tutti)
(Imagem de Opera per Tutti)
Jorge Rodrigues recorda a cantora e professora Cristina de Castro, que faleceu na passada terça-feira, 12 de Outubro.
A Cristina morreu!
Perdoe-se-me este desabafo despropositadamente familiar, mas não há volta a dar. Quando soube da morte dela, revoadas de memórias me assaltaram, a maior parte delas situadas na sala de sua casa em Campo de Ourique, onde tive, dadas por ela, as primeiríssimas aulas de canto. Eu tinha-lhe sido recomendado por um amigo então comum, e teria uns 18 anos. Curiosamente, descobri logo nos nossos primeiros contactos a coincidência de ambos fazermos anos a 7 de Janeiro, com a exacta diferença de 30 anos. A partir daí deglutimos em comum alguns jantares de aniversário.
Foi nessa sala que me comecei a embrenhar em assuntos – muito – sérios: saber estar num palco e o que significa exprimirmo-nos em cima dele com a voz; saber que o que interessa verdadeiramente nesta profissão é o público, e absolutamente mais ninguém, pois nenhum crítico há que consiga roubar um milionésimo que seja à felicidade que constitui um triunfo de público; saber que se deve ter um respeito absoluto pelos grandes expoentes da profissão; e, acima de tudo, saber que o nosso duca, signore e maestro é sempre o compositor.
Ela era também uma Professora fora de série no que concerne à sua absoluta entrega aos alunos. A todos os níveis, científico e pessoal. As minhas aulas, às terças e sextas, acabavam quase invariavelmente num restaurante quase em frente à sua casa, onde almoçávamos. Aí comi dezenas de alheiras com ovo estrelado, muitas delas pagas por ela, que, para além de nunca me ter aceitado um tostão por qualquer aula (agora posso dizê-lo, Cristina), ainda me pagava o almoço. Assinado: Maria Cristina de Castro.
Eu por essas alturas tinha tempo. Não sei o que foi sucedendo à minha vida, mas nos anos de juventude fartava-me de fazer coisas e tinha tempo para tudo, hoje não tenho tempo para nada! E com o tempo que então tinha, ficava muitas vezes a assistir a aulas de outros alunos. Gostava muito quando por lá aparecia o José Fardilha – o Zé – que me deixava esmagado pela potência, extensão e beleza da voz. Eu, que me esfalfava todo para dar um ré, um mi, ficava siderado com os lás bemóis, dados, assim, facilmente, ao meu lado. Eu estava a descobrir este mundo.
Cena típica:
- Ó Zé, foi lindo esse sol!
- Não foi nada, Cristina, foi uma porcaria, estava forçado!
Olhavam para mim. Para mim, o chavalo!, como se eu pudesse ser juiz naquelas, para mim altíssimas, contendas! Recordo que ficava sempre para morrer, sem saber que dizer – mas, obviamente, dizia:
- Eu achei fantástico!
Bem, o Zé parecia aceitar.
- Ó Zé, vês? Eu se te digo que está bem, é porque está! Tens de confiar em mim. Vá lá, vamos descer agora e depois fazemos outro vocalizo.
Recordo o Átila, um cão medonho, que gostava de morder em alguns alunos e que por vezes até na dona o fazia. Assim que ouvia tocar à porta punha-se do lado de dentro a rosnar ferozmente, mostrando uns dentes que lhe saíam dos beiços, dois de um lado e um do outro. Recordo cenas inacreditáveis, como a Cristina a ir buscar pedaços de carne ao frigorífico para com eles fazer um carreiro que levava à cozinha. O Átila atirava-se à carne, cujo último pedaço era lançado para o ponto da cozinha mais afastado da porta. Assim que ele voava para a carne, a Cristina fechava a porta aceleradamente. Ficava a casa em paz, podia prosseguir-se com a aula! Curiosamente, o Átila gostava de mim, e quando eu estava a assistir a aulas de outros alunos, sentado, num sofá que ficava do lado direito da Cristina, ele tinha por vezes – se o aluno lhe agradava – permissão de entrar. Colocava então a cabeça entre as minhas duas apavoradas pernas, olhando para mim com uma doçura irreal.
Recordo as pesquisas a gavetas e recantos, pejados de memórias líricas. A Cristina, sabendo reconhecer (ela tirava radiografias mentais às pessoas) a minha paixão, ia por vezes comigo visitar os programas, as fotos, as dedicatórias que ela tinha pela casa. Agarradas a estes objectos, milhares de memórias de astros com que cantou – Simionatos, Ghiaurovs, Corellis, Krausses, etc., etc. Eteceteras que significavam uma gloriosa galeria de cantores, alguns dos maiores da segunda metade do século XX. Eu deslumbrava-me com essas recordações!
Recordo que a Cristina manejou o canto com grandes seres – com Bechi, por exemplo – e esteve, nos inícios da carreira, ao lado de monstros sagrados. Quem teve a sorte de poder estar presente no camarim de Gwyneth Jones depois de esta ter cantado em concerto em São Carlos, nos anos 80, poderia vê-la em amena cavaqueira com a Cristina. Porque ambas disputaram em Inglaterra, em inícios de carreira, um Concurso de Canto. Gwyneth Jones ganhou o primeiro prémio, mas a Cristina ficou em segundo. E recordavam-no ali.
Será bom não esquecer a realidade portuguesa dos anos 50 e 60. Em São Carlos, salvas raras excepções, que começaram a ser mais numerosas e efectivas nos Anos 60 e nos Anos 70 antes do 25 de Abril, era vedado aos cantores portugueses o manejo dos grandes papéis operáticos. A Cristina, que teve os primeiros anos de carreira nos Anos 50, ainda apanhou o teatro querendo ouvir só vedetas. O São Carlos nos Anos 50, falo da temporada oficial, era um bastião estrangeiro, com director português. Mas os melhores cantores portugueses cantavam papéis mais secundários ao lado dos grandes craques. E a Cristina cantou com todos eles, em centenas de récitas de que tive ecos através dela.
Foi assim que a Cristina cantou ao lado de Maria Callas, em Março de 1958, fazendo a Annina. Nunca será demais magnificar a adoração que ela tinha por Callas. Falava dela sempre esmagada, com uma admiração sem nenhum, repito, nenhum limite. Adorou-a, ainda por cima, como ser humano. Um facto muito engraçado: ela não admitia nenhuma crítica à voz e à arte de Callas. Quando começavam, tipo Ricardo Araújo Pereira, naquela coisa de: Ai, mas a desigualdade; ai, mas o timbre, e coisa e tal… a Cristina cortava cerce. Repetia que a Callas era a maior, que não tinha defeitos, e desinteressava-se da conversa, numa espécie de voltar costas mental. Eu adorava isso.
Se eu já adorava Callas, o que também me uniu à Cristina nos primeiros tempos, fiquei a conhecer outras facetas da grande cantora em testemunho vivo. Um testemunho da minha professora!
Depois, os estudos com a Cristina acabaram, são coisas da vida, mas ela continuou, no Conservatório e, depois de se reformar, em casa, a receber alunos que vinham do ensino (pois as gargantas dos professores sofrem muito), do teatro, do canto, obviamente, sei lá eu de onde eles vinham. Foram centenas! Ela, também, nunca recusava ajudar, e tinha com a juventude um contacto facílimo. Quase toda a gente neste país passou pelo seu ensino, num momento ou outro, com mais ou menos frequência.
Isto porque a Cristina era verdadeiramente uma artista, e estes têm um coração e um cérebro sempre jovens. Há neles uma loucura, um modo algo descentrado da vida dos normais humanos que apaixona e brilha. Recordo, por exemplo, que uma vez ela foi jantar a minha casa em Benfica. Foi de carro, sozinha, e ao sair eu dei-lhe indicações de como chegar a casa. No outro dia apanhámos uma barrigada de riso: saída das portas de Benfica para ir para Campolide, deu por ela em Carcavelos, sem saber como lá tinha ido parar.
Conto todas estas cenas, porque foram as que me irromperam, assim de repente. E poderia ficar aqui a escrever páginas e páginas de memórias, muito mais concretas e numerosas. É a quantidade imensa de memórias que me faz sentir o quanto gosto de alguém.
E da Cristina eu sempre gostei muito, muito.
Ai, os gostares! - como escreveu Guimarães Rosa.
E como ela gostava também muito das pessoas de quem gostava, creio que escolheu a data em que morreu. Por amizade.
Eu explico: a grande adoração da Cristina era Callas. Tenho para mim que, quando soube da morte de Sutherland, a Cristina resolveu morrer, para que não se falasse tanto da australiana. É que esta, em Portugal, também cantou uma única vez e, tal como Callas, a ópera La Traviata de Verdi. E, não apenas pelo supremo brilhantismo com que o fez, mas também pelas circunstâncias históricas em que decorreu a última récita – na noite de 24 de Abril de 1974 – será talvez a única cantora que poderá fazer empalidecer um pouco a magnitude da Traviata de 58. E a Cristina não esteve para isso. Morreu. Pelo menos sabia que em Portugal, no seu Portugal, a notícia da sua morte ia desviar as atenções da – lamentável – morte de Sutherland.
Estou a imaginar o Céu, por esta altura. A Callas, sentada, vendo aparecer a Cristina:
- Annina, donde vieni?
- Da Lisbona.
- Oh, Lisbona…
E ainda por lá estão à conversa.
Jorge Rodrigues
Cristina de Castro fala sobre a experiência de ter cantado com Maria Callas:
Una voce poco fa, por Maria Cristina de Castro, em 1958. Gravação gentilmente cedida por Luís Castanheira.
(Imagem de Víctor Carneiro - FB)
11.10.10
La Stupenda
Era o ano de 1988 e Novembro corria frio e molhado em Barcelona. Comprámos o Guía del Ocio para nos inteirarmos do que se passava na cidade e ficámos a saber que Joan Sutherland e Alfredo Kraus cantavam "Lucia di Lammermoor" nessa noite. Ora... e bilhetes? pensámos, desanimados. Dirigimo-nos à Praça da Catalunha e começámos a descer as Ramblas até nos depararmos com o Gran Teatre del Liceu.
Por desfastio, embora descrentes, perguntámos na bilheteira se ainda haveria dois bilhetinhos para mais logo. Para nosso grande espanto e felicidade, havia, sim, poucos e com visibilidade reduzida.
No velhinho Liceu, antes do incêndio, havia duas entradas: a boa, na Rambla dels Caputxins, e a dos pobrezinhos, no Carrer de Sant Pau. Subimos as escadas até ao topo e tomámos os nossos lugares. Quase podíamos tocar no tecto. Do cenário víamos pouco mas isso não importava. Se nos empoleirássemos ligeiramente, por vezes até conseguíamos ver a Lucia e o Edgardo. E quando eles cantavam, apesar de já terem ambos passado o apogeu havia muito, o teatro inteiro vibrava. A Cena da Loucura de Lucia deixou o público em delírio. No final de uma récita inesquecível, o Liceu inteiro saiu à Rambla em euforia. Dois anos mais tarde, Joan Sutherland retirou-se dos palcos. Ontem, retirou-se da vida.
Como Lucia, em Covent Garden (1959)
(Imagens daqui)
(Imagens daqui)
A Cena da Loucura, como Joan Sutherland a cantou em Barcelona em 1988:
A Teresa é uma das maiores fãs de Dame Joan Sutherland que conheço. Leia aqui as suas entradas sobre La Stupenda, nomeadamente a que fala da sua experiência em Lisboa, quando cá cantou "La Traviata", em Abril de 74.
ADENDA: A Antena 2 tem disponível online o Império dos Sentidos de hoje. Paulo Alves Guerra e João Pereira Bastos falam de Joan Sutherland e deixam-nos ouvir excertos das suas gravações e de uma interessante entrevista concedida por Dame Joan ao próprio João Pereira Bastos, com perguntas fornecidas por Jorge Rodrigues para o programa "Vozes de São Carlos", de que era autor.
1.10.10
O Prazer da Música
Uma proposta para o Dia Mundial da Música: Maria João Pires com Trevor Pinnock e a Orquestra de Câmara da Europa, no concerto de 29 de Setembro na Cité de la Musique, em Paris. Vá a 2 para aceder ao Concerto para Piano nº 27 de Mozart e não perca os encores a quatro mãos, em 3, se quer perceber o que é o prazer de fazer música.
Adenda: o Concerto nº 27:
Adenda: o Concerto nº 27:
Reminiscências
Como se esperava, o recital de Artur Pizarro - ontem no CCB (o primeiro da Integral da Obra para Piano de Chopin) - foi excelente. Não estive lá mas sei. A Antena 2 distribuiu-o pelos lares de quem não coube no Pequeno Auditório ou mora longe, por exemplo, no Algarve. Foi assim que sentimos juntos, eu aqui e a Gi lá, a grande vontade de partilhar esta minha viagem à descoberta de Chopin com o público português. Esteja, pois, atento às datas. Se o CCB não reprogramar a série de recitais de Artur Pizarro para o Grande Auditório, o que seria uma dádiva de inspiração divina, poderá sempre ouvi-los na Antena 2, que prometeu transmitir a Integral em directo.
(Excerto do álbum "Reminiscences")
30.9.10
Austeridade
Talvez prevendo as medidas de austeridade ontem anunciadas, o CCB programou a Integral da Obra para Piano de Chopin, por Artur Pizarro, no Pequeno Auditório. Foi muito bem pensado porque há que incentivar o público à poupança. Imagine os espectadores a afluírem em massa ao Grande Auditório; a quantidade de Euros que gastariam em bilhetes. Assim é um sossego. Não há, aforra-se, que o Natal não tarda aí.
26.9.10
Ainda Così
A propósito do que a Io escreveu sobre "Così Fan Tutte" na Gulbenkian, lembrei-me do que disse Dame Kiri Te Kanawa recentemente numa entrevista que descobri algures: Some young singers are pressured to be thin and sing like the larger singers of the past but with "tiny bodies". Ide lá ouvir o que diz quem sabe do que fala.
25.9.10
Così così
Confesso: a versão de "Così Fan Tutte" apresentada na Gulbenkian aborreceu-me. Achei-a assim-assim.
Detalhando um bocadinho:
- Fui recordando a excelência de Karl Böhm, ou Gardiner, há quase vinte anos no Teatro de São Carlos. Isto das bitolas é tramado.
- A Orquestra Barroca de Freiburg é excelente mas faltou Mozart onde não precisávamos de Bach. Ainda dei comigo a pensar se Mozart não teria adormecido profundamente em várias ocasiões caso tivesse vindo a Lisboa.
- René Jacobs dirigiu sempre muito baixinho, sem espessura, sem volume, plano, liso.
- Houve alguns momentos bonitinhos da parte dos cantores mas nenhum deles foi notável. Também pensei que podiam estar com medo de cantar alto e destoar daquela sonoridade sedenta de uma boa dose de cafeína revigorante.
- Gostei da solução cénica. Apesar de se tratar de uma versão de concerto, os cantores actuaram como se estivessem numa versão encenada. Mas não é isso que torna memorável um concerto. A um concerto vai-se ouvir.
Ouça-se a abertura de "Così Fan Tutte" dirigida por Gardiner, registada no Théâtre du Châtelet, na mesma produção que passou por Lisboa no milénio passado.
23.9.10
Plumeria
Ficámos a saber, pela boca do seu dono, que ela veio da Madeira e que gosta muito de viver ali, naquela encosta virada para o Sul, vigiando o Guincho. Os telemóveis, tal como as mais sofisticadas máquinas fotográficas, ainda não captam cheiros, o que é uma pena. Deixo aqui um pedido aos fabricantes: por favor, inventem máquinas fotográficas com nariz.
16.9.10
O Sorriso da Inocência
Dias de Callas são todos, mas o de hoje é mais que os outros.
Callas na Traviata de Lisboa
(Foto religiosamente roubada desta colecção)
(Foto religiosamente roubada desta colecção)
15.9.10
Temporada 2010/2011
Finalmente apresentada hoje, aí está a nova temporada do Teatro Nacional de São Carlos. Se quiser entreter-se, pode ir directamente a Temporada Lírica, a Temporada Sinfónica, a Bailado ou a Outras Iniciativas. Por agora é tudo, que não há tempo nem muita pachorra.
ADENDA: Leia-se o artigo de Isabel Coutinho no Público.
ADENDA: Leia-se o artigo de Isabel Coutinho no Público.
Nos próximos anos Martin André espera ter Verdi, Puccini e Mozart como pilares principais. Em 2013 comemora-se o nascimento de Wagner e Verdi e o director artístico pensa já na temporada que deve ser feita a longo prazo. Como acontece em qualquer teatro europeu.
12.9.10
Uma Árvore em Flor
If only I could become a flowering tree,
rain down upon your thin grey hair
cool white blossoms,
with scent of lemon and jasmine!
©Márcia Lessa/Gulbenkian (Imagem encontrada no sound + vision)
(Mais imagens no FB da Fundação Gulbenkian)
(Mais imagens no FB da Fundação Gulbenkian)
I only ask that you treat me, the tree,
with the deepest reverence.
The water pour carefully.
A partir de um conto tradicional indiano, John Adams compôs uma ópera de grande beleza musical e poética que pudemos ver e ouvir ontem, ao fim da tarde, na Gulbenkian. Joana Carneiro, que o próprio Adams escolheu para sua assistente na estreia em 2006, dirigiu "A Flowering Tree" em Chicago, Paris e, agora, Lisboa. Coro, orquestra e solistas responderam-lhe na perfeição e deram-nos momentos sublimes. As sugestões visuais vinham impregnadas do aroma das plumérias.
"A Flowering Tree" é uma bela história de um príncipe que se apaixona por uma jovem que tem o poder de se transformar em árvore florida. Um dia o ritual corre mal e ela não consegue regressar totalmente à forma humana. Mulher-árvore, hostilizada e desprezada por todos, vagueia pelas ruas, canta por uma esmola. O príncipe, infeliz pelo seu desaparecimento, erra também pelas cidades, até que um dia o acaso lhes oferece o feliz reencontro.
O programa de sala, com sinopse detalhada e o libreto original e traduzido, está disponível em PDF.
John Adams em entrevista, a propósito da estreia de "A Flowering Tree"
6.9.10
Entretanto, em Barcelona...
"Iphigenie auf Tauris", de Gluck, em directo do Gran Teatre del Liceu.
A encenação/coreografia é de Pina Bausch, reposta por Dominique Mercy.
ADENDA: A Io comentou, e muito bem, no A&OD.
ADENDA: A Io comentou, e muito bem, no A&OD.
(Imagens de Tanztheater Wuppertal - Pina Bausch)
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